Uma nova preocupação surgiu entre advogados com a reforma
tributária aprovada na Câmara: a possibilidade de muitos funcionários com
carteira assinada serem estimulados por patrões a trabalharem como pessoas
jurídicas. O fenômeno da “pejotização”, para escapar de impostos mais altos, já
era uma tendência desde a reforma da Previdência, em 2019, que elevou encargos
sobre as empresas, e pode agora se acentuar, especialmente no setor de
serviços, o que mais emprega no país e que será o grande afetado pelas mudanças
da PEC 45.
A atual etapa da reforma tributária, focada no consumo,
transforma quatro tributos em dois. Deixam de existir os federais PIS e Cofins,
o estadual ICMS e o municipal ISS, de modo a criar dois: a Contribuição sobre
Bens e Serviços (CBS), destinada à União, e o Imposto sobre Bens e Serviços
(IBS), que abastecerá o caixa de estados e municípios. O federal IPI (Imposto
sobre Produtos Industrializados) também acaba, mas será substituído pelo Imposto
Seletivo.
A grande mudança da reforma é que, tanto na fabricação de um produto, quanto na realização de um serviço, os insumos, materiais e outros serviços utilizados pela empresa poderão gerar créditos para a CBS e o IBS, uma vez que seus fornecedores já pagaram os mesmos tributos ao vendê-los. Essa é a lógica do Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), modelo que inspira a reforma, e que está presente em cerca de 170 países.
Um dos argumentos defendidos pela indústria é o de que poderá terceirizar muitas atividades secundárias, uma vez que garantirá com mais segurança o aproveitamento de créditos. Hoje, há uma infinidade de regras do PIS/Cofins e do ICMS que impedem isso.
No caso dos serviços, o ISS, cobrado por municípios, não gera crédito. O PIS/Cofins, mesmo na sistemática não cumulativa (que gera créditos), praticamente não é aproveitado nos serviços, pois essas atividades têm gasto irrisório com insumos geradores de crédito.
No novo sistema, os serviços também poderão aproveitar
créditos na CBS e no IBS, mas apesar do aumento relevante na carga tributária
do setor, suas atividades não terão muitas oportunidades de apuração efetiva de
créditos, para compensar os tributos pagos hoje sobre seu próprio faturamento. O
maior “insumo”, e que traz maior custo para essas empresas, se dá com pagamento
dos funcionários. E a folha de salários não dá direito a nenhum crédito.
As projeções no mercado é de que a CBS e o IBS somados sejam
de 25%, estimativa baseada em estudos do formulador da reforma, Bernard Appy,
atual secretário do Ministério da Fazenda. Mas esse percentual não leva em
conta os incentivos fiscais a serem concedidos a diversos setores: educação,
saúde, finanças, entre vários outros inseridos de última hora pelo relator da
proposta na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
Por isso, é provável que serviços comuns, que atendem à classe média, sejam tributados com índices mais altos, que podem beirar os 30%. Seria o maior IVA do mundo, maior que o da Hungria, de 27%, segundo levantamento feito pelo escritório Bichara Advogados.
Pessoas jurídicas
Para abater tal alíquota, as empresas tenderiam a tornar funcionários em PJs, sigla de pessoas jurídicas. A CBS e o IBS recolhidos por essas poderia ser abatido no imposto devido pela empresa na prestação do serviço final, reduzindo seu preço.
“Vejo dois problemas. Primeiro, a gente elimina o trabalho
de carteira assinada e todas as garantias atreladas ao emprego: manutenção do
salário, indenização em caso de demissão sem justa causa, salário-desemprego,
terço adicional durante as férias. Um contrato entre pessoas jurídicas pode ser
revogado a qualquer momento sem indenização. Para o trabalhador, portanto, pode
piorar”, diz Murillo Estevam Allevato Neto, sócio do escritório.
O segundo problema, segundo ele, é que nos últimos anos a
Receita Federal e a Justiça do Trabalho vêm apertando a fiscalização sobre a
pejotização.
O entendimento é de que isso constitui fraude, para pagar menos tributos, quando a contratação da pessoa jurídica envolve uma relação de subordinação, como ocorre entre um funcionário e um patrão, com horários fixos e cumprimento de metas, sem a autonomia que uma empresa teria na prestação de um serviço a outra. “É ilegal se existe vínculo de subordinação. Mas existe estrutura suficiente para fiscalizar todo mundo? Isso é uma prática que vai ter de observar”, diz o advogado.
Maria Carolina Torres Sampaio, sócia e head da área tributária
do GVM Advogados, considera que a transformação de funcionários em pessoas
jurídicas vai crescer, especialmente dos empregados de cargos e salários mais
altos. “Assim, seriam pagos como fornecedores e a empresa teria direito ao
crédito que eles recolheram como pessoas jurídicas”, diz.
A advogada comenta que, em muitas situações, a relação se assemelha muito mais a uma prestação de serviços do que a um trabalho subordinado. A linha de separação é tênue. Mas, segundo ela, a Receita hoje costuma desconsiderar prestações de serviço válidas e regulares, sob a alegação de planejamento tributário e evasão quanto às verbas previdenciárias.
“Com o provável aumento de pessoas oferecendo sua mão de obra via PJ, haja vista o maior interesse das empresas nesta sistemática, a tendência é que a Receita seja ainda mais agressiva nas fiscalizações, complicando algumas relações válidas de prestação de serviço. Por outro lado, trabalhadores efetivos, que serão induzidos à pejotização, sofrerão nas duas pontas – perderão direitos trabalhistas e acabarão sofrendo autuações da Receita Federal”.
A reforma agora passará pelo Senado e o relator, Eduardo Braga (MDB-AM), já sinalizou a interlocutores que pretende fazer um pente fino nos incentivos aprovados a numerosos setores pela Câmara.