Reforma tributária não garante menos disputas judiciais, afirmam especialistas

Apesar da promessa de simplificar e reduzir o custo das empresas com disputas judiciais contra o Fisco, a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados não traz, pelo menos por enquanto, a garantia de que haverá menos litigiosidade. É o que avaliam quatro tributaristas consultados pela Gazeta do Povo.

Vários são os motivos apontados. Em primeiro lugar, regras cruciais – sobre valor de alíquotas e detalhes de incentivos fiscais – ainda não foram apresentadas, e só devem ser aprovadas numa lei complementar, no futuro. Isso impede uma certeza de que haverá redução no contencioso.

Outra razão envolve a possibilidade dessa mesma lei complementar, cujo teor não foi sequer esboçado, ser questionada quanto à congruência com a Constituição e a própria PEC da reforma. Há ainda preocupações e dúvidas quanto à capacidade e razoabilidade da Receita para arrecadar de forma correta e justa, acostumada que está com o atual modelo.

“Como nós não temos todos os projetos que tratam da reforma tributária, apenas temos um substitutivo que foi apresentado agora, uma PEC cheia de complexidades, não temos a lei complementar, não temos as demais leis ordinárias necessárias, resoluções do Senado, etc. Não é transparente essa reforma tributária. Mas, pela complexidade da PEC 45, dá para se imaginar, se especular que o contencioso tributário que hoje em dia já é alto, que vai se manter no mesmo nível”, diz André Felix Ricotta de Oliveira, doutor e mestre em Direto Tributário pela PUC-SP e membro da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da OAB-SP.

A principal mudança da atual etapa da reforma, focada no
consumo, é a unificação dos tributos federais PIS e Cofins e do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI) na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS); e
da fusão do estadual Imposto sobre Circulação de Bens e Mercadorias (ICMS) e do
municipal Imposto sobre Serviços (ISS) no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Em síntese: para a União, as empresas e consumidores pagarão
a CBS, que financia o SUS, a Previdência e o seguro-desemprego, entre outros
benefícios sociais; para estados e municípios, pagarão o IBS, cuja receita
poderá ser aplicada livremente por governadores e prefeitos.

A maior diferença é que a CBS e o IBS são Impostos sobre
Valor Agregado (IVA). Trata-se de um modelo no qual em cada etapa da produção
de uma mercadoria ou realização de um serviço, a empresa desconta os tributos
pagos em fases anteriores pelos fornecedores.

Atualmente, para o PIS/Cofins, ICMS e IPI há alíquotas
diferenciadas para cada insumo, bem ou serviço usado no produto. Para piorar,
há uma infinidade de regimes diferenciados, em cada estado, que impedem a
empresa de descontar o tributo já pago por seus fornecedores, a depender do
item. Outro complicador é que a maior parte do ICMS fica na origem, o que leva
estados a disputarem a instalação das empresas em seus territórios, inclusive
com incentivos fiscais, para arrecadar mais.

Na reforma, o ICMS será devido ao estado em que o bem ou serviço será consumido, e ponto final. A alíquota federal, da CBS, deverá ser única para cada produto e o IBS será definido por cada estado ou município, no caso de serviços, onde haverá o consumo.

Por que empresários e economistas gostaram da simplificação

Por causa da simplificação, tanto para o contribuinte,
quanto para o Fisco, a reforma tem sido elogiada pela maioria dos economistas e
empresários, principalmente aqueles ligados à indústria, por facilitar os
pagamentos e dar mais clareza ao que deve ser pago.

Um estudo recente do Insper estimou que o IVA acabará com
95% das disputas judiciais em torno dos cinco tributos que substituirá. Os
pesquisadores Vanessa Rahal Canado, Breno Vasconcelos e Thais Romero Veiga
Shingai analisaram informações prestadas em 2021 por 751 empresas de capital
aberto e encontraram 526 processos, nas quais contestam a cobrança de R$ 120,7
bilhões.

No PIS/Confins, seriam eliminadas ou reduzidas discussões
sobre aproveitamento e ressarcimento de créditos, materialidade, compensação e
incentivos fiscais, principalmente. No ICMS, acabariam as disputas em torno de
temas como aproveitamento de créditos, Difal (diferença entre a alíquota
interna e a interestadual), transferência de mercadorias e conflito de
competência, acerca do tribunal estadual apto para julgar o caso. No IPI, se
esvaziariam discussões acerca de incentivos, classificação fiscal, eliminação
da cobrança, entre outros.

O estudo, porém, diz que todas essas brigas judiciais praticamente acabariam porque os próprios tributos seriam extintos. Os processos atuais continuariam existindo, mas terminariam à medida que os casos fossem julgados. Não significa que novos tipos de disputa não surgiriam com a CBS, o IBS, o Imposto Seletivo (que também substituiria o IPI), além de novidades como o cashback (possibilidade de pessoas de baixa renda receberem de volta o que pagaram).

“Atualmente, o nosso sistema possui cinco tributos sobre o
consumo: o ICMS dos estados; o ISS dos municípios; o IPI, o PIS e a Cofins, de
competência da União. A ideia é unificar esses tributos e, ao reduzir o número
de tributos, reduzir também um universo de situações em que podem haver conflitos
entre o fisco e os contribuintes. Porém, o fato é que a PEC, do jeito que ela
está redigida no momento, é só um esboço do que do que vai vir a ser o IBS e a
CBS. A maioria dos temas fundamentais da estrutura desses tributos vai ficar
para ser definido por uma lei complementar que a gente não tem sequer uma
minuta no momento”, diz Thulio Carvalho, tributarista e mestre pela PUC/SP, do
escritório Dias de Souza Advogados Associados.

Ele dá como exemplos os fatos geradores (tipo de transação que será efetivamente tributada), sujeitos passivos (quem paga), tratamentos diferenciados (combustíveis, saúde, educação, serviços financeiros) e itens que mereçam ser desincentivados (como fumo e agrotóxicos).

Guilherme Di Ferreira, advogado no escritório Lara Martins Advogados e diretor-adjunto da Comissão de Direito Tributário da OAB-GO, também enfatiza a relevância da lei complementar. “Imposto seletivo terá que ser regulamentado por lei complementar. Os incentivos fiscais também, assim como o cashback. O que cria muito litígio no Judiciário e também no âmbito administrativo são as leis. Se a lei complementar não estiver contra a Constituição, se ela não for contrária ao que traz o texto da emenda constitucional, se não estiver em contradição com qualquer outra situação, poderá sim ter redução de litígio”, diz.

Duplo sistema e classificação fiscal serão fonte de disputa

Maria Carolina Torres Sampaio, sócia e head da área
tributária do GVM Advogados, tem certeza que haverá mais contencioso, pelo
menos nos próximos 10 anos, período de transição da aplicação dos atuais para
os novos tributos, no qual os dois sistemas conviverão em paralelo. Mesmo em
relação à CBS, IBS e Imposto Seletivo, ela vê potenciais pendengas.

A classificação fiscal das mercadorias é um exemplo clássico
que tende a continuar. Para escapar de alíquotas maiores, definidas por tipo de
produto, os fabricantes tentam, a todo modo, reclassificá-lo para enquadrá-lo
numa alíquota menor. Casos notórios foram a reclassificação do bombom Sonho de
Valsa como biscoito waffle e não chocolate; a manobra do McDonalds para taxar a
casquinha como sobremesa e não sorvete; as discussões da Crocs com a
fiscalização em torno do seu calçado: sapato impermeável ou sandália
emborrachada?

“A gente vai ter alíquotas diferentes no imposto seletivo. A
briga vai se transferir do IPI para o imposto seletivo. No mais, o imposto seletivo
vai incidir sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Vamos ter discussões relacionadas a estas características”, diz a advogada.

Briga por aproveitamento de crédito continuarão

Outra questão se refere à possibilidade de aproveitamento de
créditos no PIS/Cofins e no ICMS, ou seja, a possibilidade de a empresa
recolher menos com base no que foi pago por seus fornecedores. Hoje, é algo
complicadíssimo: depende do insumo, do produto, do estado.

O ICMS cobrado pelos estados permite aproveitar crédito pago em fases anteriores, mas em várias situações o crédito é vedado. Além disso, cada estado tem regras específicas. O PIS/Cofins deveria ter uma não cumulatividade mais ampla, mas a Receita sempre entendeu que os créditos deveriam se restringir à aquisição de insumos totalmente consumidos no processo de produção. Mesmo com o Judiciário ampliando esse entendimento, para bens e serviços essenciais ao processo produtivo, a classificação é vaga e gera discussões. Municípios cobram ISS em função do faturamento, a receita com vendas, e não sobre valor adicionado ao serviço.

“O tributo novo é de não cumulatividade plena, pelo que se alega. Só que a mentalidade da nossa fiscalização é totalmente oposta a isso, ou seja, de gerar o efeito cascata para arrecadar mais. E o IVA não é 100% do que está para trás que vai gerar crédito, pois existem algumas condicionantes. Muito menos do que em relação a PIS/Cofins e a ICMS, é verdade. Mas há situações em que não vai haver a possibilidade de aproveitamento do crédito. Essa briga vai continuar”, diz Sampaio. “E se a empresa não tiver a possibilidade de aproveitar os créditos dela no sistema novo, ela vai conseguir aproveitar plenamente em relação aos tributos que são pagos no atual sistema?”.

Outros exemplos

Pela PEC da reforma tributária, a cesta básica terá alíquota 0. Para a advogada, haverá briga na Justiça para incluir mais alimentos e itens de higiene entre os produtos que fazem parte dela.

O novo IPVA vai ser calculado em razão da emissão de
carbono. Ela prevê litígios para tentar comprovar que um veículo não polui
tanto como a Receita estabelece.

O IBS será cobrado no local de prestação do serviço. Uma
empresa que oferece serviços na internet por todo o país tende a tentar fugir
da cobrança de municípios que aprovarem alíquotas mais altas.

No cashback, poderá haver uma corrida à Justiça para entrar nos grupos com direito ao benefício.

Para Maria Carolina Sampaio, tão certo como a permanência
dos litígios, em novas discussões, é o aumento da carga no setor de serviços.
“Médico, advogado, arquiteto, engenheiro, manicure, mecânico. Tudo isso vai
subir”, resume a advogada.

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