Uma medida provisória (MP) editada em janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) restabeleceu o chamado voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O órgão é um colegiado formado por representantes do Estado e da sociedade vinculado ao Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar, em segunda instância administrativa, os litígios em matéria tributária e aduaneira.
De acordo com a MP, os conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que são os presidentes de turmas e câmaras no Carf, poderão desempatar as votações a favor da União. A medida havia sido extinta durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), por meio de um dispositivo incluído pelo Congresso Nacional na tramitação da chamada MP do Contribuinte. A partir dali, ficou estabelecido que os empates seriam decididos a favor do contribuinte.
A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) e já há maioria formada contra o voto de qualidade, mas o caso está suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Apesar disso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, classificou como “vergonha” o que vinha acontecendo no Carf.
“Não tem como justificar uma coisa dessas. Não tem nenhum país da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] ou do G20 com esse sistema. É impossível o próprio contribuinte julgar um ato de infração, como está acontecendo”, prosseguiu Haddad.
Na avaliação do ministro, desde que o voto de qualidade foi derrubado, as empresas passaram a se beneficiar do empate pró-contribuinte. “Não estamos falando de milhares de empresas, mas de 20 ou 30 empresas que estão se beneficiando do empate pró-contribuinte com as teses mais absurdas, a ponto de desafiar a jurisprudência firmada do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal”, completou.
Nos cálculos do Ministério da Fazenda, a volta do voto de qualidade e de outras medidas para o Carf vão provocar uma injeção, neste ano, de R$ 50 bilhões nos cofres públicos. Além disso, garantiriam ainda uma entrada anual permanente de R$ 15 bilhões, estima a pasta. A medida foi incluída no pacote lançado pelo governo para diminuir o rombo das contas públicas.
Ainda de acordo com Haddad, a mudança na legislação ocorrida em 2020 provocou uma disparada do estoque de processos acumulados no Carf, de R$ 600 bilhões, entre dezembro de 2015 e dezembro de 2019, para mais de R$ 1 trilhão em outubro de 2022.
Na semana passada, já na primeira sessão da Câmara Superior do Carf neste ano, a Fazenda conquistou duas vitórias graças ao voto de qualidade. Em uma delas, sobre tributação de lucros no exterior, a derrotada foi a Petrobras, numa causa de R$ 5,7 bilhões. A outra causa dizia respeito à “trava de 30%”, limite de prejuízo que pode ser abatido do cálculo dos tributos federais que incidem sobre o lucro.
Se os julgamentos tivessem sido realizados antes da edição da MP por Lula, a Fazenda teria perdido a disputa, pois os placares empatados resultariam em vitória dos contribuintes.
Empresários e tributaristas criticam a medida provisória. Para Danielle Dalledone, advogada do setor tributário do escritório Araúz Advogados, a iniciativa contraria o código tributário – que determina interpretação favorável ao acusado em caso de dúvida – e tende a “asfixiar” o contribuinte com mais tributos.
“O retorno do voto de qualidade retoma a estrutura de um ‘super julgador’, concedendo ao Fisco direito a dois votos: um ordinário, estando no mesmo nível dos demais julgadores, e outro extraordinário, repetindo seu voto nas situações que ensejam desempate”, diz a advogada. “Na prática, portanto, significa a retomada de um sistema parcial aos interesses arrecadatórios da União e contraditório ao disposto no artigo 112, do Código Tributário Nacional, que garante interpretação favorável ao contribuinte nas situações de dúvidas razoáveis”, completa.
Retomada do voto de qualidade do Carf enfrenta resistência no Congresso
Por ter sido feita por meio de medida provisória, a volta do voto de qualidade no Carf está em vigor desde a publicação. No entanto, para virar lei, o texto precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional em até 120 dias. Até o momento, parlamentares indicam que podem derrubar a MP editada por Lula.
Para tentar evitar o revés, integrantes da base governista já se movimentam na busca pela manutenção do voto de qualidade do Carf. A expectativa é de que o texto seja analisado pela Câmara e pelo Senado até o início de março.
“Estamos diante de um governo que está disposto a dialogar e conversar com todos. É uma necessidade para a inclusão do Brasil dentro do rol de países democráticos da OCDE. O Brasil é a única nação que existe o modelo sem o voto de qualidade, por isso que defendemos a aprovação dessa medida provisória”, defendeu o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
O prazo para apresentação de emendas ao texto da MP, que são propostas de alteração ao texto original feitas pelos parlamentares, se encerrou na última sexta-feira (3). A partir daí, o ministro Fernando Haddad pretende buscar os líderes do Congresso para negociar a manutenção do dispositivo defendido pelo governo. “Vamos dialogar e conversar para ver o melhor ajuste e o melhor texto final”, explicou Randolfe.
Além do governo, a manutenção do voto de qualidade é defendida pelo Sindifisco Nacional, entidade sindical representativa dos Auditores-Fiscais da Receita Federal. “O retorno do voto de qualidade acaba com uma distorção que reforçava a regressividade do nosso sistema tributário. Desde 2020 tivemos uma perda muito grande para os cofres públicos. É notório que, quanto maior o montante envolvido, maiores eram as chances de empate e, portanto, do não pagamento dos tributos”, afirma o presidente do Sindifisco Nacional, Isac Falcão.
Apesar disso, a frente parlamentar do empreendedorismo, que reúne pouco mais de 200 deputados e senadores, se mobiliza contra a MP do governo Lula. Uma emenda apresentada pelo grupo prevê que as indicações para o Carf sejam aprovadas pelo Congresso Nacional.
Segundo a emenda, essas indicações deixariam de ser prerrogativa do Ministério da Fazenda e passariam a ser submetidas à Comissão de Finanças e Tributação (CFT), na Câmara, e à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), no Senado, a partir do encaminhamento de listas tríplices. Pela proposta, caberia ao presidente da CFT a escolha de um dos nomes para ser sabatinado e aprovado pelas duas Casas do Congresso.
“A indicação, nos moldes atuais, não atende o interesse soberano da sociedade brasileira, pois concentra um demasiado poder das escolhas destes conselheiros na mão da Receita Federal e do Poder Executivo”, diz a justificativa da emenda.
OAB questionou MP de Lula no Supremo
Além dos entraves no Congresso Nacional, o texto da medida provisória foi alvo de questionamento em uma ação apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) junto ao Supremo na última semana.
Na ação, a OAB pede que, a partir da medida cautelar, seja adotada a regra vigente até a edição da MP, ou que fique suspensa a proclamação dos resultados de julgamento dos casos em que haja empate na votação, até que haja conclusão do julgamento do STF sobre a matéria, ou que o Congresso Nacional converta em lei a medida provisória editada pelo governo.
“Aplacar a regra do voto de qualidade no Carf teve o objetivo de equacionar uma situação de iniquidade no processo administrativo tributário federal, impedindo que, havendo empate entre os julgadores do Carf, a solução fosse sempre a favor da Fazenda Pública”, defendeu o presidente da OAB Nacional, Beto Simonetti.
Em março do ano passado o julgamento do STF sobre o voto de qualidade do Carf foi suspenso por um pedido de vistas do ministro Nunes Marques e segue sem previsão de ser retomado. Apesar de não ter sido concluído, já há maioria pela rejeição do dispositivo.
Durante o julgamento, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a definição da forma de desempate no tribunal administrativo é opção legítima. Contudo, lembrou que a Constituição prevê um sistema protetivo ao contribuinte em relação a eventuais abusos e distorções do Estado, o que torna mais razoável que o empate seja a favor do contribuinte, e não do Fisco.
O magistrado ainda destacou que é um equívoco afirmar que alteração iria prejudicar a Fazenda Pública, pois a maioria dos julgamentos, nos últimos anos, foram unânimes, o que mostra que o voto de qualidade é a exceção. Levantamento do próprio Carf abrangendo dados entre 2017 e 2019 mostrou que 93% das decisões no conselho foram tomadas por unanimidade ou maioria dos votos.
Por essa pesquisa, 45.479 decisões (93%) no período foram unânimes ou por maioria dos votos, 2.269 (5%) foram por voto de qualidade a favor da Fazenda, e 700 (2%) tiveram voto favorável ao contribuinte.