Em mais um capítulo do impasse entre Executivo, Congresso e representantes da iniciativa privada, um programa criado para socorrer o setor de eventos entrou na mira do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Trata-se do Perse, Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, instituído em 2022 para mitigar os impactos econômicos da pandemia de Covid-19 em empresas do ramo.
No ano passado, o total de renúncias
com o programa chegou a R$ 17 bilhões, segundo o ministro, o que acendeu um
alerta na equipe econômica, que busca zerar o déficit primário em 2024.
No dia 28 de dezembro, o governo
estabeleceu o fim gradual do Perse até 2025, na controversa medida provisória
(MP)
que também prevê a reoneração gradativa da folha salarial de setores que têm
desconto na contribuição previdenciária patronal. O texto original previa a
vigência do auxílio ao setor de eventos até fevereiro de 2027.
Para o governo, além de o Perse ter
custado muito mais do que se estimava inicialmente – a expectativa era de uma
renúncia anual de R$ 4 bilhões –, haveria indícios de irregularidades no uso
dos benefícios. A líderes do Congresso, Haddad disse que a iniciativa abriu
margem até mesmo para operações de lavagem de dinheiro de atividades ilícitas.
“Há indícios de que isso [irregularidades] aconteceu. Empresas
que usaram o CNAE [Classificação Nacional de Atividades Econômicas], por
exemplo, para simular ser do setor de eventos, e não eram do setor de eventos”,
disse
o ministro na noite de quarta-feira (7).
No ano passado, a Receita detectou uma empresa de material de construção que teria declarado receitas de R$ 1 bilhão no âmbito do Perse, além de postos de gasolina se beneficiando do programa, segundo revelou o jornal “Valor Econômico”.
A Lei 14.148/2021, que instituiu o
programa, considera como pertencentes ao setor de turismo e, portanto,
beneficiárias das medidas de socorro, as seguintes atividades:
- realização ou comercialização de congressos,
feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de
negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral,
casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas
de espetáculos; - hotelaria em geral;
- administração de salas de exibição
cinematográfica; e - prestação de serviços turísticos.
Além de zerar por cinco anos as
alíquotas de PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ, o programa permite a renegociação de
dívidas inscritas até 31 de outubro de 2022, com descontos de até 70% e
parcelamento em até 145 meses, pouco mais de 12 anos.
A lei autoriza ainda indenização, em valor equivalente à
despesa para pagamento de empregados durante a pandemia, para empresas com
redução superior a 50% no faturamento entre 2019 e 2020.
Haddad disse ter encomendado à Receita um relatório com o montante de impostos que cada empresa deixou de recolher como beneficiária do programa. O documento será encaminhado ao Congresso. “O que nós queremos, ao fim e ao cabo, é o quê? É transparência nos dados, para que o Congresso tome uma decisão bem informada sobre o que está acontecendo”, afirmou.
“Não se trata de caça às bruxas. Obviamente que quem errou vai ser punido na forma da lei. Mas se trata de mostrar que o programa não pode ter essa dimensão”, disse o ministro. “Isso é muito ruim para o país, e o país não está em condições de desperdiçar esse dinheiro, diante do quadro que inspira cuidados no rumo certo, de equilibrar as contas, para que o juro caia e todo mundo possa desenvolver seus negócios, seus trabalhos, gerando emprego para toda a sociedade.”
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no fim de janeiro, o ministro citou um acordo que teria sido feito com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), autor do projeto de lei que instituiu o programa, ainda em dezembro de 2022, em relação a valores que seriam destinados ao Perse.
Segundo Haddad, havia sido definido um total de R$ 20 bilhões para o socorro ao setor de eventos, independentemente do tempo de duração do programa. Da conversa em que se discutiu o assunto, teriam participado ainda Gabriel Galípolo, atual diretor do Banco Central, Robinson Barreirinhas, atual secretário da Receita Federal, e o deputado Felipe Carreras.
“Nós dissemos: tem R$ 20 bilhões para o Perse. Pode acabar em um ano, em dois, em quatro, em cinco, mas ele vai acabar quando consumir R$ 20 bilhões. E consumiu quase R$ 17 bilhões no ano passado. Portanto, a MP se fez necessária porque, se você contar a noventena das contribuições sociais, e a anuidade do Imposto de Renda, você esgotou os R$ 20 bilhões”, disse.
Diante da falta de controle sobre
benefícios fiscais concedidos a determinados setores, inclusive os do Perse, o
governo enviou uma proposta ao Congresso que dispõe sobre a obrigatoriedade de
empresas apresentarem uma declaração eletrônica listando todos os benefícios de
que desfrutam.
“Teremos um controle mais amplo do Perse. Ele é preocupante,
sempre foi e está no nosso foco”, disse o secretário da Receita Federal,
Robinson Barreirinhas, em entrevista coletiva na semana passada.
Entidades do setor, parlamentares
ligados ao ramo e o próprio Lira, no entanto, já se manifestaram publicamente contra
a medida do governo de antecipar o fim do Perse.
Sobre a fala de Haddad no Roda Viva, o presidente da Câmara disse, ainda em janeiro, que o acordo com o Congresso previa R$ 25 bilhões para o programa. Na segunda-feira (5), na abertura do ano legislativo no Congresso, Lira criticou a decisão do governo de acabar com o programa por meio de MP.
“Conquistas como a desoneração e o Perse, essencial para que milhões de empregos de um setor devastado pela pandemia se sustentem, não podem retroceder sem ampla discussão com este Parlamento”, declarou.
Um encontro entre Lira e Haddad que
estava agendado para o dia seguinte acabou
cancelado, sugerindo um aumento de tensão entre o governo e a Câmara após o
discurso do presidente da Casa legislativa. O ministro, no entanto, negou
qualquer conflito.
Na terça (6), a Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo (CNC) divulgou um estudo próprio que sugere que, caso o Perse
seja encerrado, até R$ 244 bilhões por ano deixariam de ser injetados na
economia do país.
Segundo a entidade, antes da pandemia, o setor de turismo crescia a uma taxa próxima a 6% ao ano. Após a instituição do Perse, o porcentual teria saltado para 30%. O estudo diz ainda que, para cada 1% de aumento no valor adicionado pelo setor de turismo na economia em geral, há aumento de 0,9% no Produto Interno Bruto (PIB).
“O turismo pode ser um divisor de águas na melhoria das
condições de vida de uma região inteira, e a resposta certa, definitivamente,
não é reduzir investimentos”, disse o presidente da CNC, José Roberto Tadros.
Ao jornal “Folha de S.Paulo”, o deputado Felipe Carreras disse ter convicção de que nenhum setor ou entidade estão “fazendo nada de errado”.
“Mas, se tiver empresas, que sejam punidas com muito rigor. Mas não pode acabar com o programa”, afirmou. Ele disse ainda que “nunca viu em nenhum setor tudo o que estão fazendo para macular o Perse”. “Por que esse preconceito com a classe artística brasileira, com a indústria hoteleira, com quem produz eventos?”, questionou.