Apesar de ter enfrentado uma série de desafios econômicos, como hiperinflação e instabilidade política nos últimos anos, a Argentina ainda conta com alguns índices superiores aos do Brasil. Em 2023, a Renda Nacional Bruta (RNB) per capita da Argentina foi de US$ 12,5 mil, comparada aos US$ 9 mil do Brasil, conforme informações disponibilizadas pelo Banco Mundial. Dados de 2023, também disponibilizados pelo próprio Banco Mundial, mostram que o PIB (Produto Interno Bruto) per capita argentino foi de US$ 13.730,52, enquanto o brasileiro alcançou US$ 10.043,61.
Essa disparidade pode parecer surpreendente, especialmente considerando que o Brasil ainda é a maior economia da América do Sul. No entanto, alguns fatores explicam os motivos por trás destes números.
Em entrevista à Gazeta do Povo, João Alfredo Nyegray, professor do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e coordenador do Observatório de Negócios Internacionais da instituição, primeiramente explicou a diferença entre PIB per capita e renda per capita.
“A renda per capita é uma métrica que representa a renda média de cada pessoa em uma determinada região, como um país, estado ou cidade. Ela é calculada dividindo-se a renda total de uma população de um local pelo número de pessoas que compõem essa população”, disse.
Enquanto a renda per capita refere-se à renda média da população de uma região, Nyegray disse que o “PIB per capita refere-se ao valor total de todos os bens e serviços produzidos em uma economia [PIB] dividido pela população”.
O professor lembrou que “o PIB per capita não leva em conta a distribuição de renda entre os indivíduos, apenas a média do valor econômico gerado”. Ele explica que um PIB per capita elevado geralmente indica uma “economia robusta e, potencialmente, um padrão de vida mais alto em um país”, mas não necessariamente reflete a “equidade na distribuição da renda dentro da população”.
De acordo com Nyegray, diversos fatores explicam a importância de se conhecer a renda per capita de uma nação. O primeiro deles, ressaltou, é que a renda per capita “se trata de um indicador de bem-estar, uma vez que ajuda a medir o nível de bem-estar econômico de uma população”.
Nyegray disse que “uma renda per capita mais alta [em um país] geralmente reflete um padrão de vida mais elevado” e pode influenciar também na formulação de políticas públicas, “como as fiscais e redistributivas”.
A diferença entre os países
Conforme explicou Nyegray, o desenvolvimento econômico histórico e as políticas adotadas por Brasil e Argentina ao longo do tempo explicam a diferença entre os dois países em relação ao PIB e à renda per capita.
“Historicamente, a Argentina teve um desenvolvimento econômico mais precoce e diversificado em comparação com o Brasil, especialmente nos séculos 19 e 20. Durante a primeira metade do século 20, a Argentina era uma das economias mais ricas do mundo, beneficiando-se de um modelo agroexportador altamente lucrativo, baseado na exportação de carne e grãos”. Esse desenvolvimento inicial, disse o professor, estabeleceu uma “base econômica relativamente robusta” para a Argentina, bem como uma “estrutura produtiva” que, mesmo com crises subsequentes, “continua a influenciar positivamente o nível de renda per capita” do país.
Por outro lado, Nyegray ressalta que “o Brasil, até meados do século 20, era predominantemente agrário e menos integrado aos mercados internacionais. A industrialização no Brasil ocorreu de forma mais tardia e foi intensificada a partir dos anos 1950. Essa industrialização foi acompanhada por políticas de substituição de importações que, apesar de acelerar momentaneamente o crescimento econômico, também criaram distorções econômicas a partir do protecionismo e da dependência de insumos importados, que afetaram a produtividade nacional – até hoje muito baixa”.
O professor também destacou o fator demográfico como um dos pontos para essa diferença: “[…] A população da Argentina é significativamente menor do que a do Brasil. Com uma população de aproximadamente 47 milhões de habitantes [2024], comparada aos mais de 220 milhões do Brasil. A menor população da Argentina contribui para uma maior renda per capita, dado que o produto econômico gerado é dividido por um número menor de pessoas”.
Nyegray também explicou à reportagem que, atualmente, a “Argentina possui uma população mais urbanizada e com maior acesso a serviços básicos e educação de qualidade” o que favorece uma “maior produtividade do trabalho”. E que a estrutura demográfica do país “com uma população relativamente menor e com melhor acesso a recursos educacionais e de saúde”, contribui “para um capital humano mais qualificado e, portanto, uma renda per capita mais elevada”.
Nyegray citou que, embora a Argentina enfrente crises econômicas frequentes, como hiperinflação, crises de dívida e desvalorizações cambiais, “essas crises não têm sido suficientes para apagar completamente as vantagens estruturais e históricas do país em termos de renda per capita”.
“A base econômica estabelecida durante os períodos de bonança, a diversificação econômica [especialmente no setor agroindustrial] e a menor desigualdade de renda ajudam a mitigar os impactos das crises”, disse o professor.
Vladimir Maciel, coordenador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica (CMLE) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), também falou sobre quais são os motivos por trás dessa diferença na renda per capita entre Argentina e Brasil. Para o economista, essa distinção pode ser explicada por dois principais fatores:
- Capital humano superior na Argentina: Em entrevista à Gazeta do Povo, Maciel afirmou que “a escolaridade média na Argentina é mais alta que no Brasil”, o que resulta em uma força de trabalho mais qualificada.
- Maior intensidade de capital em relação ao trabalho: Na Argentina, conforme disse Maciel, há uma relação mais intensa de capital em comparação ao Brasil, o que eleva a produtividade.
“Ambos os fatores implicam maior produtividade [maior PIB per capita] e consequentemente maior renda per capita”, disse ele.
Além disso, Maciel também destacou que o setor exportador argentino desempenha um papel relevante na geração de uma renda per capita mais alta no país.
Embora o Brasil, segundo Maciel, seja “uma potência mundial em exportação da agropecuária e da mineração e tenhamos uma indústria diversificada”, a “Argentina tem setores exportadores que contribuem significativamente para uma renda per capita mais alta, especialmente devido à sua produtividade no setor agropecuário e na indústria de alimentos [voltada ao processamento destinado à exportação]”, explicou ele.
Renan Silva, professor de Economia do Ibmec Brasília, também disse em entrevista à Gazeta do Povo que o setor exportador da Argentina, especialmente o que está relacionado ao agronegócio, tem sido um dos principais motores para a maior renda per capita do país.
“O setor exportador da Argentina, especialmente o agronegócio, tem sido um forte contribuinte para a renda per capita do país. Produtos como soja, carne e outros grãos são grandes geradores de receita. Comparativamente, o Brasil também possui um setor agrícola robusto, mas enfrenta desafios como a logística e infraestrutura que podem impactar a produtividade”, lembrou Silva.
Falta de reformas estruturais pode ampliar ainda mais diferença entre os dois países
Silva lembrou que a falta de reformas econômicas e o aumento dos gastos públicos no Brasil podem limitar o crescimento econômico do país “e, portanto, a renda per capita”, aumentando ainda mais a diferença em relação à Argentina. Ele pontuou que, para tentar mudar este cenário, o Brasil poderia considerar reformas “como a simplificação tributária, melhoria da infraestrutura, e incentivos à inovação e produtividade”.
Para Maciel, reformas que induzam “o aumento da produtividade, aumento da concorrência e melhoria do ambiente de negócios” poderiam ser adotadas pelo atual governo brasileiro para tentar se aproximar da renda argentina.
“Uma reforma tributária que realmente simplifique o processo e não amplie a carga tributária, uma reforma administrativa e do processo orçamentário que modernizem a gestão do Estado, abertura comercial etc. Além, é claro, de melhoria da qualidade da educação”, disse ele.
No entanto, Maciel acredita que o governo liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem pouco interesse em realizar tais ações.
“O atual governo parte de um diagnóstico que privilegia a intervenção e o aumento do gasto público, crendo que o Estado deva induzir a atividade econômica. Já vivenciamos isso e o resultado é crise econômica e a perda de ganhos momentâneos e retrocessos. Não creio que neste governo essas reformas sejam prioridades ou mesmo consideradas como relevantes”, afirmou ele.
Nyegray, por sua vez, lembrou que “há décadas urge a necessidade de reformas administrativas, tributárias e de limitação de gastos públicos” no Brasil.
“Sem essas reformas, a economia pode continuar sofrendo com as ineficiências estruturais que limitam o crescimento econômico e, consequentemente, a renda per capita de todos nós”, disse ele.
“Sem reformas que incentivem a inovação, a modernização da infraestrutura e a educação de qualidade, a produtividade do trabalho tende a permanecer estagnada. Uma produtividade baixa significa que a economia cresce mais lentamente, resultando em uma renda per capita menor”, lembrou.
“O atual governo parece desconhecer que gastos públicos elevados, sem reformas fiscais que ampliem a base tributária ou controlem despesas, podem resultar em déficits fiscais crônicos e em um aumento da dívida pública. Uma dívida pública crescente pode levar a uma maior necessidade de financiamento, elevando os custos com juros e limitando os recursos disponíveis para investimentos produtivos em infraestrutura, educação e saúde”, criticou Nyegray.
O professor explicou que, assim como na Argentina, onde, no passado, “a falta de reformas e políticas econômicas irresponsáveis minaram a confiança dos investidores e levaram a uma deterioração econômica”, o Brasil “pode enfrentar desafios semelhantes” se o governo Lula continuar a negligenciar reformas fundamentais.
Nyegray advertiu que, se os mercados perceberem que o “governo brasileiro não está comprometido com a responsabilidade fiscal e com reformas estruturais, o país pode enfrentar uma fuga de capitais e uma queda nos investimentos”. Isso, por sua vez, afetaria negativamente a taxa de crescimento econômico e a renda per capita, aprofundando a disparidade já existente entre Brasil e Argentina, lembrou o professor.
Fator Milei
Silva destacou que a Argentina, sob a liderança de Javier Milei, tem o potencial de expandir ainda mais a diferença de renda per capita em relação ao Brasil, caso o presidente libertário consiga efetivar suas reformas estruturais.
“As reformas propostas por Javier Milei, se implementadas, podem potencialmente aumentar a renda per capita a longo prazo”, explicou ele. “Reformas de liberalização econômica, como a redução de barreiras comerciais e desregulamentação, podem aumentar a eficiência econômica. No entanto, o sucesso depende da implementação eficaz e da estabilidade política”, afirmou o professor do Ibmec.