O recrudescimento de políticas comerciais intervencionistas do período kirschnerista na Argentina, a partir de 2003, com maior controle do câmbio e sobretaxação das exportações, aprofundou o fosso que separa o desenvolvimento da agropecuária no país vizinho em relação ao Brasil.
Um estudo comparativo da Bolsa de Comércio de Rosário busca entender por que a agricultura argentina tem ficado para trás da brasileira, apesar de vantagens naturais como terras férteis e baixos custos com logística e transporte.
É fato que, desde 1997, o país vizinho dobrou a produção de grãos. O Brasil, contudo, quadruplicou as colheitas no mesmo período. E passou a responder por 64,6% da produção total sul-americana, enquanto a Argentina recuou 13,3 pontos percentuais para um patamar de 25,8%.
Na década de 90, a colheita média de soja, milho e trigo da Argentina representava 65% da produção brasileira. No ciclo 2022/23, após quebra recorde devido à seca, esse número recuou para 22%.
Argentina encolheu na produção total sul-americana
Os dados fazem parte do artigo “Por que a agricultura argentina não cresce no ritmo da brasileira?”, publicado pela Bolsa de Rosário. O comparativo foi apresentado em Brasília, no final de agosto, durante o Primeiro Congresso Latino-Americano de Diálogos: Perspectivas Econômicas sobre o Subdesenvolvimento.
Na prática, dizem os autores, “se a Argentina tivesse mantido a mesma relação de 20 anos atrás com o Brasil (65,6% da produção brasileira), atualmente a produção argentina das três culturas totalizaria 165 milhões de toneladas. Na safra 2021/22 a colheita de soja, milho e trigo na Argentina atingiu 116 milhões de toneladas, uma diferença de quase 50 milhões”. Assinam o artigo os economistas Guido D’Angelo, Bruno Ferrari e Julio Calzada.
Considerando as duas últimas décadas, o recuo argentino significou a não produção de um total acumulado de 95 milhões de toneladas de soja, 60 milhões de toneladas de milho e 33 milhões de toneladas de trigo. Aos atuais preços FOB, o país deixou de faturar US$ 3,1 bilhões a mais por ano.
Razões para o atraso do agro argentino
A vantagem brasileira não se explica apenas pelo aumento da área plantada, ainda que significativo. Os hectares cultivados com soja, milho e trigo no Brasil cresceram 53% entre 2012 e 2022, contra aumento de 8% na Argentina. O Brasil também agregou maior produtividade aos cultivos, liderando a implantação de novas tecnologias. Enquanto por aqui cerca de 70% das sementes utilizadas são controladas e reconhecem o pagamento de royalties, na Argentina o percentual é de apenas 35%.
Talvez o fator mais determinante para o atraso argentino, contudo, esteja na insistente política de controle do câmbio e restrição às exportações por meio de cotas e taxas. A justificativa sempre foi a de fomentar o desenvolvimento industrial interno e garantir a segurança alimentar. Os impostos sobre exportação (33% de retenciones para a soja, por exemplo) e o câmbio artificial do governo (até 50% mais baixo) “roubam” até 65% da renda dos produtores.
O estudo dos pesquisadores de Rosário conclui que esse confisco oficial compromete a capacidade de investimento do agro argentino. Isso fica claro no número de tratores nos dois países. Enquanto no Brasil a frota cresceu quase 50% de 2006 a 2017, totalizando 1,23 milhão de unidades, na Argentina houve encolhimento de 20,5%, passando de 244 mil unidades para 194 mil.
Milei pede paciência aos produtores
Os limites à exportação de carne, por outro lado, em vez de fazer sobrar produto no mercado interno, têm desestimulado os pecuaristas. Como resultado, a Argentina exporta apenas 1 tonelada de carne para cada 40 toneladas de milho produzidas. No Brasil a relação é de 1 tonelada de carne para cada 5 toneladas de milho.
Durante a maior feira agropecuária do país, em Palermo, no fim de julho, o presidente Javier Milei voltou a prometer o fim do imposto sobre as exportações do agro, mas pediu paciência aos produtores. “Ninguém está tão ansioso como nós para sair deste modelo desastroso em que o Estado, entre retenções e estoques, expropria 70% do que se produz no campo. Contudo, sabemos que retirar esses remendos representaria agravar a crise que herdamos”, afirmou.
Uma publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de junho deste ano, mostra que o desempenho das exportações argentinas tem se baseado apenas no crescimento do comércio mundial, com queda de competitividade. O Brasil, ao contrário, vem crescendo com expressivos ganhos de produtividade.
“O exemplo argentino é um clássico do que não se deve fazer, pois o país era, no passado, considerado rico, mas passou nas últimas décadas para um desenvolvimento econômico medíocre”, dizem os pesquisadores José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho e Zenaide Rodrigues Ferreira, autores do estudo.
Brasil seguiu trajetória diferente, incentivando exportações
Em entrevista à Gazeta do Povo, Vieira Filho recorda que os fundamentos da moderna agropecuária brasileira foram lançados na criação da Embrapa no início dos anos 1970, e sua consequente contribuição para tropicalizar a agricultura e desbravar o Cerrado. Na política econômica, um divisor de águas teria ocorrido na virada para 2000, quando o Brasil abandonou a política de controle do dólar, passando a adotar a cotação flutuante.
Junto com o ajuste fiscal e o regime de metas de inflação, criou-se o que ficou conhecido como tripé macroeconômico. Quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2002, e passou a importar elevados volumes de commodities agrícolas, o Brasil estava mais preparado para atender a demanda do que os argentinos, amarrados às taxas de exportação e ao rígido controle cambial.
O equívoco argentino, segundo Vieira Filho, teria sido aderir à visão teórica estruturalista, que parte do pressuposto de que a agropecuária, ainda que moderna, é sempre menos interessante para desenvolver o país do que a industrialização.
“Uma das hipóteses da teoria estruturalista é que os termos de troca são desfavoráveis. Quando a gente observa, os termos de troca na verdade foram extremamente favoráveis ao setor agropecuário”, sublinha o pesquisador. Como exemplo, ele faz uma comparação entre o preço de um laptop na década de 1990, em torno de R$ 7 mil, e que nos anos 2000 passou a custar de R$ 2 mil a R$ 3 mil. A tonelada da soja fez caminho inverso, e mais do que dobrou de valor no mesmo período.
Caso brasileiro desmente “teoria da dependência”, diz pesquisador
“Ou seja, você teve um aumento dos preços das commodities, ao mesmo tempo em que houve uma depreciação dos preços dos bens industriais. O caso brasileiro rejeita a teoria da dependência, de que países que têm base econômica agroexportadora estariam relativamente piores do que aqueles países com bases industriais”, diz o pesquisador do Ipea.
Por outro lado, o erro argentino, e de tantos outros países que taxam as commodities agrícolas, é imaginar que os setores primário, industrial e de serviços funcionam de forma separada. “Não é o fato de eu ter um setor agropecuário forte que não posso estimular o setor comercial”, assegura Vieira Filho.
“No Brasil, a gente percebe que as cidades com setor agroindustrial mais diversificado e fortalecido são as que têm os melhores desempenhos de crescimento de IDH, que implicam em mais renda per capita, melhoria de saúde e de educação da população”, argumenta.
Argentina tenta recuperar terreno perdido
No estudo da Bolsa de Rosário, os pesquisadores argentinos veem espaço para recuperar o terreno perdido. Para isso, seria preciso diminuir o atraso tecnológico e agregar até 6,5 milhões de hectares disponíveis para expansão agrícola, o que permitiria crescimento entre 10% a 30% da produção. Esse avanço, contudo, depende de aumento da renda dos produtores.
“Isto pode ser obtido com menor ou nenhum desvio cambial, um corte nas tarifas de exportação e um melhor contexto macroeconômico. Uma redução do peso destes fatores permitiria ao setor agroindustrial argentino recuperar uma trajetória de crescimento mais sustentável e com uma contribuição ainda maior para a economia”, dizem os pesquisadores. Somente em soja, milho e trigo, a renda se expandiria em US$ 13 bilhões por ano.
Se tanto Argentina como o Brasil passaram por prolongados períodos sob governos de esquerda, o que explica caminhos tão diferentes trilhados pela agropecuária nos dois lados da fronteira? Para Diego de La Puente, diretor da Nóvitas, uma das principais consultorias agropecuárias de Buenos Aires, no caso brasileiro as políticas de apoio ao setor agropecuário têm sido mantidas ao longo dos anos, como o Plano Safra, com regras claras e menos interferências ideológicas, apesar da frequente retórica anti-agro.
Na Argentina, cada governo inventa algo diferente
“Na Argentina, já tivemos governos de direita, de esquerda, de centro, o que for, mas é fato que cada governo inventa algo diferente. Javier Milei não é exceção, porque, além de todas as possibilidades que a Argentina tem, e dos desejos do governo, que obviamente é favorável ao campo, é mais fácil falar do que fazer”, sublinha De La Puente.
“As tarifas de exportação não baixaram, ainda temos a brecha cambial, ainda que menor. Faz tanto tempo que essas coisas não mudam, e o setor produtivo, antes de fazer investimentos, quer realmente ver mudanças significativas e definitivas”, diz o analista.
O irônico em todo esse cenário é que, a julgar pela retórica do Planalto e da Casa Rosada, há um risco de inversão de papéis. Milei tentando diminuir a presença do Estado no agro argentino, e Lula tentando ampliar esse controle.
Exemplo disso está na iniciativa de um grupo de 22 deputados petistas que apresentou, em 2022, um projeto para taxar a exportação de grãos e carnes no país. Lula, ainda candidato, chegou a afirmar que pretendia “discutir” a política de exportação de carnes do Brasil, a fim de diminuir os preços no mercado interno.
“Vamos discutir se vai continuar só exportando ou se vai deixar um pouco para nós comermos”, disse Lula. Exatamente a fórmula fracassada na Argentina. Na realidade, o Brasil exporta apenas 25% da produção de carne bovina.
Ímpeto petista de controle estatal preocupa
Há quem veja que o governo Lula hoje, com maior ímpeto intervencionista, oferece mais risco à agropecuária do que no primeiro mandato. Antônio Sartori, diretor da consultoria Brasoja, de Porto Alegre, aponta falta autonomia ao Ministério da Agricultura. E diz que o governo se deixa pautar mais facilmente pelos conflitos geopolíticos, interferindo no agro e mexendo nos preços.
A situação contrasta com a época do ministro Roberto Rodrigues, que atuava como um freio dentro do governo Lula. Em 2003, durante um jantar em Porto Alegre, Sartori conta que pediu a palavra para agradecer o trabalho que Rodrigues fazia pelo agro brasileiro. Rodrigues respondeu: “Vou te dizer só o seguinte. Vocês sabem o que estou fazendo, mas vocês não sabem o que eu não estou deixando eles fazerem”.
Décadas de intervencionismo estatal deixaram profundas marcas no agro argentino, que só não quebrou, segundo analistas, devido aos recursos naturais extremamente favoráveis. “Os políticos aproveitam. Sacam, sacam e sacam, e seguimos produzindo”, já disse anteriormente à Gazeta do Povo Sebástian Oliveros, analista-chefe da StoneX em Buenos Aires.
Diante da tentação intervencionista no setor agropecuário, não custa aprender com o exemplo argentino. “O economista no governo normalmente acha que o Estado é capaz de gerar investimento. Na verdade, quem gera investimento é o setor produtivo. Então, todo recurso que o Estado retira da economia com a ideia de que vai fazer investimento, na verdade ele está retirando recurso produtivo que seria investido e que geraria emprego”, conclui Vieira Filho, do Ipea.