O que a banda Weezer tem a ver com as HQs independentes dos anos 1990?

Por que um número cada vez menor de fãs realmente se importava com os heróis e vilões da DC Comics e da Marvel Comics nos anos 1990? Como os adolescentes encontraram uma voz própria depois da tão celebrada Geração Coca-Cola dos anos 1980? De que maneira as mudanças geopolíticas e a projeção apocalíptica da virada do século afetou o mercado cultural noventista? E o que Weezer, mangás e as histórias em quadrinhos independentes e alternativas têm a ver com tudo isso e a “salvação” do mercado editorial nessa época?

Acho que minha própria experiência pessoal com isso, analisada ao longo desses anos todos, pode ser responder a tudo isso, já que posso reunir contextos, eventos, fatos e memórias afetivas em um resumo do espírito de uma época.

Se você pegasse a fita cassete predileta que eu escutava no walkman indo para o colégio do começo dos anos 1990, veria uma salada de gêneros e várias bandas, que, no final das contas, não me definia com precisão. Tinha de tudo: The Cure, Brujeria, Extreme Noise Terror, Husker Dü, Sepultura, Metálica, Cólera, Bad Religion, NOFX, Rage Against the Machine, entre outros. Isso mudou completamente em 1993, quando completei 15 anos no início do Ensino Fundamental em Londrina.

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Foi quando escutei o Blue Album do Weezer, um CD gringo que um amigo meu trouxe dos Estados Unidos: “acho que você vai gostar, me lembrou muito de você”. Foi ali que percebi, que, pela primeira vez, uma banda resumia o que eu sentia, a melodia trazia a melancolia e o romantismo que eu só entendi anos depois. E, mais importante, aquilo tudo se conectava com tudo que eu tinha consumido desde criança.

Fim da Guerra Fria

O final dos anos 1980 trouxe várias mudanças geopolíticas, sociais, culturais e comportamentais no mundo todo. Os Estados Unidos e a União Soviética deixavam de protagonizar os conflitos internacionais e os países asiáticos, impulsionados pela tecnologia, passavam a ter mais destaque global. O Muro de Berlim deixou de existir, assim como várias referências e polaridades.

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A sensação era de uma mudança para uma era cheia de inovações na ciência, com aquela ideia de que teríamos carros voadores nos anos 2000, em meio a novas pesquisas e descobertas sobre genética, como clonagem de animais. Os computadores já estavam mais avançados; e muito se falava sobre a estreia de uma rede mundial de comunicação que poderia revolucionar o mundo e as relações interpessoais.

Por outro lado, a economia via o capitalismo tomando uma forma mais ampla, sorrateira e agressiva, por meio dos grandes conglomerados. A figura do executivo da Bolsa de Valores aos poucos dava lugar aos engenheiros e gênios da computação, que viam a ansiedade e a paranóia da população escalar a níveis absurdos com a possibilidade do “Fim do Mundo”,o “Bug do Milênio” nas máquinas que não poderiam lidar com a mudança de um calendário que voltaria ao “dia zero” , entre outras coisas.

Os adolescentes da virada da década de 1980 começavam uma nova etapa de descoberta da vida justamente em um mundo que muitos temiam “acabar” na virada do século. Sem as referências e polaridades que ditaram o comportamento e as convenções sociais nas duas décadas anteriores, os jovens adultos diziam que a geração dos anos 1990 seria “ainda mais perdida” do que a passada — vale destacar que o acesso múltiplas perspectivas sobre um determinado assunto era algo difícil de obter facilmente, pois a internet só chegaria no final dessa fase.

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Havia uma atmosfera de êxtase pelas inovações, assim como o temor pelas previsões. O medo da guerras mais silenciosas e agressivas abastecidas por novas tecnologias aumentava a sensação de confusão e dúvida, em uma sociedade desconectada à beira de um possível colapso na virada do século XX.

Queda dos super-heróis

No mercado mainstream de quadrinhos, havia uma grande crise criativa. Os elementos saturados da Era de Prata já não sustentavam mais aqueles personagens que surgiram entre as décadas de 1930 e 1970. Os ventos das mudanças vinham de publicações mais autorais, sombrias, violentas, cruas e realistas, como Batman: O Cavaleiro das Trevas, Watchmen, V de Vingança, Monstro do Pântano e Sandman.

Os super-heróis estavam em franca decadência, com histórias que davam muito mais valor aos corpos sexualizados, páginas duplas cheias de explosão e roteiros com poucos textos e conexão com os leitores. Haviam muitas mortes e eventos “chocantes” que vinham embalados como algo mais cerebral e próximo dos temas da época.

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A verdade é que os autores da Marvel Comics e da DC Comics não sabiam mais o que fazer além de matar ou transformar radicalmente seus principais ícones, sem uma boa e verdadeira razão para isso. As “inovações” vinham já com um odor de continuidade retroativa mal-elaborada e plot twists completamente previsíveis e enfadonhos, mas seduziam os leitores pelo visual explosivo e sempre extremo — chegou a fazer sucesso e vender bastante, a exemplo de títulos dos X-Men e da X-Force.

Mas a coisa toda andava tão mal das pernas que a própria Marvel decretou falência em meados dos anos 1990, obrigando a empresa a negociar suas principais propriedades com estúdios de cinema — daí vieram os infames contratos vitalícios da Fox com os X-Men e o Quarteto Fantástico, por exemplo.

A luz da esperança deixava de vir dos poderes divinos de um alienígena de Krypton para vir do Sol Nascente e das comédias dramáticas “pé no chão” de revistas com tramas melancólicas e quase autobiográficas, sem superpoder nenhum, do mercado independente de quadrinhos, do cinema alternativo e das bandas nerd de garagem.

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Indies, geeks e o zeitgeist dos anos 1990

Observe esses trechos da letra de In The Garage, faixa do Blue Album do Weezer lançada em 1992.

“I’ve got a Dungeon Master’s Guide/I’ve got a 12-sided die/I’ve got Kitty Pryde and Nightcrawler too/Waiting there for me, yes, I do/I do.”

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Quando escutei isso pela primeira vez, em 1993, a música falava diretamente comigo, com citações ao jogo de role playing game Dungeons and Dragons, com direito ao dado de 12 lados; além de Kitty Pride e Noturno, ambos dos X-Men.

“I’ve got an electric guitar/I play my stupid songs/I write these stupid words/And I love every one/Waiting there for me, yes, I do/I do.”

A canção mostrava uma forte conexão entre várias coisas que tinha consumido nos anos 1980, um período que acompanhei pelas experiências de meus irmãos mais velhos. E, acima de tudo, soava e dizia o que eu vivia nos anos 1990. Estar “seguro” no típico “reduto nerd” norte-americano estadunidense, a garagem (ou porão) de casas suburbanas estadunidenses, com coisas que ninguém se importava ou se conectava mostra como era esse comportamento de gostar de “coisas diferentes” na época, como os quadrinhos;e ao mesmo tempo se sentir solitário, sem ter com quem dividir isso.

A partir daí, mesmo em uma época sem internet, passei a enxergar que existia mesmo toda uma juventude “perdida” pós-Geração Coca-Cola, que, sim, embora parecesse completamente desconectada entre si e os valores ditados pelo mundo nas duas décadas anteriores, na verdade, estava fazendo o contrário disso: estava “ligando os pontos” e tentando se comunicar com uma nova comunidade sociocultural, artística e comportamental, que não se contentava em ser encaixada em apenas um ou outro nicho.

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A música do Weezer também estava conectada com os quadrinhos de Adrian Tomine e outros destaques das editoras de HQs indie Fantagraphics e Drawn & Quarterly, que também tinham essa aura melodramática e existencialista dos corredores colegiais. 

Barrados no Shopping, filme de Kevin Smith, evidenciava ainda mais essa crescente comunidade com direito à faixa Suzanne do Weezer no encerramento de uma história que era uma carta de amor para os dramas colegiais de John Hughes, como Gatinhas e Gatões, Clube dos Cinco e Curtindo a Vida Adoidado — todos filmes que cresci assistindo nos VHS pirateados e na Sessão da Tarde.

A vontade de ser iconoclasta, romper com as convenções sociais e o status quo que insistiam em ditar nossa regras no começo dos anos 1990, foi, então, crescendo como um tsunami: veio por meio das HQs de Jamie Hewlett e Alan Martin, que se tornaram uma bandeira para o movimento riot grrrl e mais tarde viria a ser a primeira banda cartunesca, o Gorillaz.

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A rebeldia e a vontade de destruir o marasmo voltou com o Nirvana e a cultura alternativa de Seattle representada no filme Vida de Solteiro, e também podia ser vista nos trabalhos de Charles Burns, a exemplo de Black Hole, que já se conectava com os trabalhos do cineasta David Cronenberg.

Para completar, a mistura de música eletrônica com hip hop, jazz e rock, com artistas como Radiohead, Portishead, Massive Attack, Tricky, entre outros, conversava com Twin Peaks e outros trabalhos de David Lynch, assim como com os quadrinhos de Daniel Clowes.

Ou seja, tudo que nossos pais e irmãos mais velhos costumavam separava em cada cantinho do prato, a gente juntou tudo em uma salada só. Fizemos questão de provar que “estar perdido”, na verdade, representava a vontade de unir todas as facetas dos novos jovens dos anos 1990, com uma assinatura própria.

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Ascensão dos independentes e dos mangás

A união de diferentes gêneros era algo que a cultura ainda estava experimentando nos anos 1990, e como a internet ainda estava engatinhando, era muito mais difícil ter pessoas comentando, criticando, compartilhando trabalhos e opiniões. E, nesse cenário, bandas e filmes “nerd”, como Weezer e O Balconista e Barrados no Shopping, ajudaram a estabelecer uma comunidade de pessoas que nem sabiam que existiam tantas pessoas com tantas referências e preferências em comum.

Essa galera percebeu que as pessoas que assistiram a Star Wars também curtiram os dramédias adolescentes de John Hughes e as esquisitices de David Lynch e David Cronenberg; e os mesmos caras e gurias também cresceram ouvindo Nick Cave, Nick Drake, Husker Dü, Pixies e outras bandas consideradas fora do circuito comercial; e são também os que começaram a ler quadrinhos diferentes da grande oferta no mercado mainstream.

Isso abriu espaço para obras como Estranhos no Paraíso, de Terry Moore, assim como o trabalho que influenciou a série “gente como a gente”: Love and Rockets, dos Irmãos Hernandez. A saga épica de bichinhos doces e carismáticos de Jeff Smith, Bone, também agradou a todos, assim como a enxurrada de trabalhos autobiográficos e new-new-journalism das editoras indie Drawn & Quarterly e Fantagraphics, a exemplo e Retalhos (Blankets), de Craig Thompson, e de Palestina, de Joe Sacco, respectivamente.

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Simultaneamente, os norte-americanos começaram a entender melhor o que os quadrinhos japoneses podem oferecer: na Terra do Sol Nascente, há centenas de gêneros de HQs, porque as editoras atacam todos os nichos. Entre as tradicionais opções de aventura e ação com samurais e robôs, você também pode encontrar gibis sobre idosos que jogam golfe, a vida noturna de acompanhantes em bares ou até sobre viagens gastronômicas exóticas. É impossível um leitor não se ver em algum lugar da prateleira de mangás.

De meados dos anos 1990 até os primeiros anos de 2000, já víamos o resultado dessa salada, com filmes como Pulp Fiction – Tempos de Violência, de Quentin Tarantino; Matrix, das irmãs Wachowski; o álbum Ok Computer, do Radiohead; e a Liga Extraordinária de Alan Moore e Kevin O’Neil trazendo um jogo de tabuleiro e um disco de vinil para complementar a experiência de leitura dos volumes que reuniram os principais personagens da literatura do século XIX.

Depois que a internet chegou, ficou mais fácil alinhar os públicos e os gêneros com as preferências e comunidades de fãs. Aliás, os nichos viraram subnichos e a coisa toda ficou mais complexa, rica e abrangente. Mas não dá para negar que o diálogo estabelecido entre o rock alternativo com os quadrinhos autorais e filmes independentes ajudou a conectar milhares de pessoas legais e esquisitas em mundo que Suzanne do Weezer tem tudo a ver com Barrados no Shopping de Kevin Smith e os desenhos de Adrian Tomine — improvável nas décadas anteriores.

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