Socorro a estados: governo propõe baixar juros em troca de investimento no ensino técnico

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou a governadores nesta terça-feira (26) uma proposta de renegociação da dívida dos estados com a União. O projeto vem na esteira de discussões com os líderes dos estados do Sul e Sudeste, os mais endividados do país, que têm ocorrido desde o início do mês.

A proposta do governo federal é de reduzir temporariamente, de 2025 a 2030, os juros que incidem sobre as dívidas estaduais. Em troca, os estados que aceitarem o acordo se comprometem a ampliar as matrículas em educação profissional articulada com ensino médio em tempo integral.

O investimento no ensino será feito com o dinheiro economizado com a queda nos juros. A meta, segundo o governo, é alcançar mais de 3 milhões de alunos matriculados no ensino médio técnico (EMT) até 2030. Para os estados que atingirem suas metas em até seis anos, a redução de juros da dívida será permanente.

Segundo comunicado da Fazenda, “estados que não possuem dívida com a União ou de menor valor terão acesso prioritário a linhas de financiamentos e outras ações de apoio a expansão do EMT”.

Hoje as dívidas estaduais são corrigidas pela inflação (IPCA) mais uma taxa real de 4% ao ano. Conforme a proposta apresentada nesta terça por Haddad, essa taxa poderá cair para até 2% reais, conforme a contrapartida oferecida pelo estado.

Para ter acesso à taxa real de 2% ao ano, o estado precisa se comprometer a investir toda a economia com juros da dívida no ensino médio técnico. Caso opte por uma taxa de juros de 2,5% ao ano, pelo menos 75% do montante economizado terá de ser aplicado na expansão do EMT. Se optar por destinar 50% da economia ao ensino, o juro será de 3% ao ano.

Segundo o governo, hoje há 7,7 milhões de matrículas no ensino médio, das quais 85% são de responsabilidade dos estados, mas apenas 1,1 milhão estão integradas à formação profissional e somente 20% são de tempo integral. O ensino para jovens e adultos (EJA) médio com formação técnica, por sua vez, tem só 40 mil matriculados.

Independentemente da adesão ao Juros por Educação, os estados poderão reduzir de forma adicional a taxa de juros em 0,5%. Para isso, deverão realizar amortização extraordinária de 10% do saldo devedor. A taxa poderá ser reduzida em 1%, desde que realizem amortização extraordinária de 20% do saldo devedor.

As amortizações poderão ser realizadas em ativos, incluindo participações em empresas públicas e sociedades de economia mista. Com as amortizações extraordinárias, a taxa de juros real dos contratos poderá chegar a 1% a.a.

Projeto será construído com os estados

Após a apresentação aos governadores, o ministro afirmou a jornalistas que a renegociação não terá impacto primário na dívida da União. “Nossa trajetória de dívida não deve ser comprometida com essa repactuação. Eu abri a reunião dizendo ‘eu não posso resolver um problema de vocês para criar um adicional no plano federal’. Porque depois, se o governo não vai bem, a economia não vai bem”, afirmou. Mas admitiu que pagar 4% de juro Real acima da inflação com a evolução da das receitas estaduais é cada vez mais difícil para os governos estaduais.

O ministro disse confiar na abertura do diálogo e afirmou que o projeto será construído conjuntamente. “Hoje foi o início de um processo. Vamos aguardar repercussão disso junto à área técnica da secretaria de fazenda dos Estados daqui para duas, três semanas”. A ideia é apresentar em 60 dias um projeto para avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O projeto, segundo o ministro, deve trocar “dívida por educação”. “No fundo, é isso que nós estamos fazendo, estamos trocando dívida por educação, porque, aliás, é uma bandeira que defendi durante muitos anos a frente do MEC [Ministério da Educação e cultura],” disse o ministro.

“O foco do presidente Lula é uma espécie de ProUni da educação profissional, m forte impacto da formação de pessoas de 16 a 24 anos na área da educação profissional. O país vai crescer, vai precisar de trabalho qualificado, vai se reindustrializar. Então nós vamos usar recursos que estão sendo liberados justamente para esse fim, formar a nossa juventude para um país que pensa no seu futuro”, completou.

Governadores do Sul e Sudeste pediram renegociação

As articulações por uma renegociação das dívidas foram lideradas pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, mas Haddad se reuniu também com os governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, Romeu Zema, de Minas Gerais, e Cláudio Castro, do Rio de Janeiro.

Os respectivos estados concentram, sozinhos, 87% da dívida consolidada líquida de todos os entes da federação, estimada em R$ 826,4 bilhões no fim de 2023. São Paulo, líder do ranking, com R$ 293,47 bilhões em dívidas em 2023, é o que menos preocupa, devido à economia pujante.

Já Minas Gerais, com R$ 166,13 bilhões; Rio de Janeiro, com R$ 154,91 bilhões; e Rio Grande do Sul, com R$ 104,90 bilhões em dívidas, figuram como caso extremo, classificados como estados superendividados.

Os estados pleiteavam uma correção fixa de 3% ao ano, além da revisão do estoque, que proporcionaria uma redução de 15% no valor a ser pago. A reivindicação foi considerada inviável pela equipe econômica, para quem as soluções apresentadas pelos estados “possuem elevado custo fiscal e sem contrapartidas”, conforme apresentação divulgada nesta terça.

Endividamento estrutural é bancado pelo Tesouro

A prática da repactuação das dívidas estaduais é recorrente desde 1997, quando foi feita a primeira grande consolidação dos débitos após o Plano Real. Desde então, sempre que os estados enfrentam desequilíbrios nas contas, apelam ao Tesouro e conseguem alívio nos débitos.

As dívidas são feitas por meio de empréstimos diretos do governo federal ou via crédito do mercado financeiro, em que os entes estabelecem a União como garantidora. Em fevereiro de 2024, por exemplo, o Tesouro Nacional pagou R$ 1,22 bilhão em dívidas atrasadas de estados, segundo o Relatório de Garantias Honradas pela União em Operações de Crédito.

Geralmente, o Tesouro cobra as contragarantias, como a retenção de repasses da União para o estado devedor, como receitas dos fundos de participação, além de multa, juros e custos operacionais.

Nos últimos anos, no entanto, decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) impediram a execução das contragarantias de vários estados em dificuldade financeira. A Corte também mediou negociações para inclusão ou continuidade de governos estaduais no regime de recuperação fiscal (RRF), que prevê o parcelamento e o escalonamento das dívidas com a União em troca de um plano de ajuste de gastos. Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul fecharam acordos com o governo federal.

Mudança no modelo do ICMS agravou situação fiscal

Em 2022, o problema cíclico do pagamento dos estados de dívidas com a União foi agravado pela lei que limitou a cobrança do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e comunicações, promovida pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) no contexto das eleições presidenciais.

Haddad criticou reiteradas vezes a decisão, que, segundo ele, prejudicou os governadores com uma desoneração não aprovada em suas assembleias do imposto, o que teria resultado em perda estimada de R$ 80 bilhões de arrecadação.

O Ministério da Fazenda diz já ter desembolsado R$ 14,8 bilhões a estados e municípios como compensação pela redução do ICMS. Em 2025, o governo ainda terá que pagar mais R$ 4,5 bilhões, totalizando R$ 27 bilhões.

Além disso, os estados foram contemplados na reforma tributária com dois fundos financeiros cujos aportes somarão R$ 790 bilhões nos próximos 20 anos. O primeiro, um fundo de compensação de benefícios fiscais e financeiro-fiscais do ICMS, para substituir os atuais incentivos estaduais que hoje provocam a chamada guerra fiscal. O segundo, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), visando reduzir desigualdades regionais e sociais.

Mesmo assim, as mudanças no modelo do ICMS têm sido utilizadas como argumento para os governos estaduais intensificarem a arrecadação. Segundo levantamento do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), dez estados e o Distrito Federal vão aumentar os impostos ao longo deste ano.

Proposta prevê obrigações orçamentárias

Com esperado, a proposta de renegociação do governo trouxe a obrigação de governadores aplicarem sobras orçamentárias decorrentes da renegociação em investimentos sociais – no caso, em educação.

A ideia é evitar que a economia nos juros seja gasta com pessoal. Nos últimos anos, mesmo com perda de arrecadação e alegando falta de recursos, muitos governo estaduais reajustaram os salários do funcionalismo.

O aumento das despesas com folha de pagamento e o crescimento menor na arrecadação têm agravado a situação fiscal dos estados de forma generalizada. Desde o ano passado, governos estaduais têm esbarrado no limite de gastos com pessoal estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, nos 12 meses até agosto de 2023, oito unidades federativas haviam superado o chamado limite prudencial de despesa com o funcionalismo do Poder Executivo, que corresponde a 95% do teto legal: Rio Grande do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Amapá, Minas Gerais, Acre, Roraima e Rio Grande do Norte.

O argumento de técnicos das secretarias de Fazenda estaduais é de que não é possível manter salários congelados. Mas o controle dos gastos públicos e reajustes dos servidores estaduais estão na mira de agentes públicos e privados.

O caso do Rio de Janeiro, que está no RRF desde 2017, é emblemático. Dados do Tesouro indicam que, nos últimos dois anos, o Rio gastou mais em expansão de pessoal do que no pagamento de sua dívida. Entre 2021 e 2023, o aumento da folha foi de R$ 17,5 bilhões, incluindo Legislativo e Judiciário, enquanto o estado pagou apenas R$ 5,6 bilhões de sua dívida.

Frente de insatisfação dos estados bons pagadores

Com a decisão de renegociação do governo, uma frente de insatisfação foi aberta entre governadores do Norte e Nordeste, segundo reportagem da Folha de S.Paulo. Os principais beneficiados coma a renegociação na região seriam Bahia, Pernambuco e Alagoas, mas com um montante de dívida bem menor – de R$ 43 bilhões – em comparação aos estados do Sul e Sudeste.

Menos endividados, estados do Nordeste criticam a flexibilização para entes federativos que descumpriram regras, concederam reajustes sem as devidas compensações ou recorreram à Justiça para não pagar as prestações da dívida em dia.

Ainda reivindicam compensações para suas regiões, com medidas que “premiem” os bons pagadores, como mais acesso a crédito para investimentos, taxas de juros menores e prioridade na indicação de projetos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

A proposta do governo era aguardada com expectativa. Economistas e parlamentares veem soluções diferentes para a questão. Felipe Salto, da Warren Investimentos, disse ao O Globo que o projeto de lei com novo indicador de cálculo da dívida não vai solucionar o problema estrutural do déficit dos estados, que passa pelo corte de gastos e alongamento dos prazos.

O deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) defende a criação de um “Desenrola” para os estados superendividados, com um corte inicial de 15% no estoque da dívida e descontos adicionais em três magnitudes (5%, 10% e 15%), à medida que os estados melhorem os indicadores sociais.

O governador Cláudio Castro, que já havia manifestado disposição de recorrer ao STF para rediscutir a dívida, disse à Agência Brasil que espera um acordo da reunião com Haddad.

“Ficamos de esperar até o dia 26 para que a gente tente, em mais uma rodada de negociação, colocar aquilo que o Rio de Janeiro entende como justo”, disse Castro. Para ele, além da natureza da dívida em si, o estado quer tratar dos indexadores futuros, dos juros e multas e da revisão do regime de recuperação fiscal.

Este texto, publicado originalmente na noite de segunda-feira (25), foi atualizado para incluir a proposta apresentada pelo governo federal aos estados na manhã desta terça (26).

Atualizado em 26/03/2024 às 12:55

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