O setor sucroenergético vive uma rara combinação de ventos favoráveis soprando em direção ao Brasil, tanto para a produção de açúcar como de etanol. Com chuvas e calor na medida certa, a safra 2023/24 de cana-de-açúcar do país deve crescer 7% em produtividade e alcançar 600 milhões de toneladas, a segunda melhor da história.
Indicadores globais se somam ao quadro positivo das lavouras domésticas. Na China, principal importador de açúcar, a produção deve ser a menor em sete anos, criando um déficit de abastecimento de 6,5 milhões de toneladas, o segundo maior já registrado.
Na Europa, as ondas de calor e as restrições a alguns defensivos químicos derrubaram em 8% a produtividade das plantações de beterraba, principal matéria-prima para confecção do adoçante. Por fim, a Índia direciona cada vez mais sacarose para produzir etanol e adicionar à gasolina. A mistura vai aumentar de 10% para 20% até 2025, uma solução de descarbonização que os asiáticos estão copiando do Brasil junto com a tecnologia dos carros flex.
Todo esse cenário pesou no anúncio do ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, nesta sexta (28), de que irá propor ao Conselho Nacional de Política Energética o aumento da mistura de etanol à gasolina, de 27,5% para 30%. É um alento para o setor, mas o fato é que a produção de açúcar se mantem altamente competitiva e deve manter a preferência dos usineiros no ciclo atual.
Como no Brasil açúcar e etanol saem majoritariamente da cana-de-açúcar, as usinas precisam escolher qual será a participação de cada um no mix de produção, dentro das possibilidades industriais. Para a maior parte delas, a decisão já foi tomada: “max sugar”, ou máximo possível de açúcar. O percentual previsto é de 47,5% do mix, o maior desde 2011.
Retomada da paridade do etanol com a gasolina é incerta
Além do ótimo momento do açúcar – os contratos futuros em Nova York atingiram no início de abril máxima de seis anos –, pesa na escolha das usinas a instabilidade do mercado de etanol, diante do histórico recente de intervenções do governo no setor de combustíveis.
Mesmo com a volta dos impostos federais, suspensos por quase um ano, e com o aumento recente da tributação da gasolina, a retomada da paridade do etanol em um nível competitivo – até 70% do preço da gasolina – não está garantida.
“O mercado de combustíveis como um todo é social e politicamente muito sensível. Então, caso o governo precise de um aumento na popularidade, ele vai mexer no preço dos combustíveis e isso vai prejudicar o etanol, como prejudicou no ano passado”, aponta Filipi Cardoso, especialista de inteligência de mercado da StoneX.
Em 2022, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tomou uma série de medidas para tentar diminuir o preço da gasolina, como a suspensão da cobrança de PIS/Cofins e Cide e a redução da alíquota máxima de ICMS. Em consequência, a competitividade do etanol virou pó e a participação do combustível no ciclo Otto (frota de veículos de passeio e carga leve), que já foi de 48,2% em 2019, caiu para 23%.
Intervencionista, PT fala em reconstruir a Petrobras
Com Lula, o ânimo intervencionista vem renovado. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o presidente “encomendou” mudanças na política de preços da Petrobras. Significa que a companhia não irá mais seguir a política de Preço de Paridade de Importação (PPI), em vigor desde 2016, e que acompanha as cotações do barril do petróleo e do dólar.
A renovação do Conselho de Administração da petrolífera, definida nesta quinta-feira (27), era considerada pela presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, uma oportunidade para emplacar “pessoas comprometidas com a reconstrução da empresa e de seu papel para o país”. Em outras palavras, uma empresa mais porosa aos humores e diretrizes do governante do dia.
Por outro lado, a cobrança de um ICMS unificado para a gasolina, em R$ 1,22 por litro, em tese, representaria uma externalidade favorável ao etanol. Mas não é algo certo.
“Com a volta integral dos impostos federais, mais essa mudança no ICMS, a gasolina na bomba ficaria por volta de R$ 6 o litro. Acho muito difícil o governo atual manter isso. Se mantiver, seria ótimo para o etanol. Mas desde o início do ano há interferência na política de preços da Petrobras. Quando parece que o etanol vai deslanchar, vem interferência de fora e acaba atrapalhando”, avalia Ana Zancaner, gerente de análise da corretora Czarnikow.
O etanol, assim, segue como ponto frágil na equação por causa das idas e vindas estatais. O foco das usinas, aponta Leonardo Alencar, head de agro da XP, sempre foi o mercado doméstico, devido ao potencial de market share ainda a ser conquistado para além da região Sudeste. Contudo, a piora do cenário no ano passado, após tentativas de interferências na Petrobras e mudanças tributárias, fez com que as usinas abrissem canais de exportação.
Mercado global de etanol ainda está se desenhando
O que era para ser apenas um desafogo acabou descortinando novas possibilidades. A usina São Martinho, por exemplo, um dos benchmarkings setoriais, calculava fechar o ciclo 2022/23 exportando 28% da produção de etanol, aproveitando o déficit de oferta na Europa simultâneo a preços baixos no mercado doméstico brasileiro.
“Conforme você começa a criar esses canais de exportação, e desenvolve a parte comercial com clientes no mercado internacional, isso tende a se tornar uma capacidade de arbitragem. O Brasil poderia ser um dos grandes exportadores do mundo”, aponta Alencar.
“Para uma economia como a japonesa decidir aumentar a mistura de etanol à gasolina, é preciso ter parceiros estratégicos extremamente confiáveis, ou diversos parceiros para escolher a melhor condição. Seria o caso de o Brasil, Índia, Tailândia e outros países exportarem, para criar esse mercado global de etanol e tornar a importação previsível e estável, em substituição ao combustível fóssil. Acho que é um processo de amadurecimento que está em curso no setor”, sublinha o analista da XP.
Em relação a outras soluções energéticas descarbonizantes, como os carros elétricos, o que não faltaria ao etanol é competitividade. “Neste processo de transição energética, a eletrificação do híbrido com etanol, que temos no Brasil, é muito melhor do que o carro elétrico da Europa, em que a matriz energética não é tão limpa”, destaca Alencar.
Milho vira coringa para viabilizar exportações de etanol
Se antes o mercado de etanol sofria o efeito gangorra da safra e entressafra da cana-de-açúcar, a produção do combustível a partir do milho estabiliza cada vez mais a oferta ao longo do ano. O milho virou a matéria-prima “coringa” que, ao contrário da cana, pode ser armazenada. A StoneX avalia que a produção de etanol de milho no país deve crescer quase 30% no ciclo 2023/24.
“É um crescimento expressivo, especialmente no Centro-Oeste, onde o consumo de etanol está bastante acelerado e onde também tem mais oferta de milho. Agora temos dois mercados, de açúcar e etanol, com possibilidade de continuar crescendo. É o crescimento do etanol de milho que traz a possibilidade de o Brasil participar desse mercado global de etanol”, aponta Filipi Cardoso.
O setor privado vem apostando no etanol de milho, mas já coloca um pé atrás, por temor que o governo, em seu ímpeto regulatório e intervencionista, acabe por limitar a expansão do segmento.
“As incertezas doem mais do que a notícia ruim. E essa quantidade de interferências gera insegurança. Já tem muita empresa segurando investimento. As usinas que têm projetos de etanol de milho estão preocupadas, por que nesse caso você não tem o açúcar, só o DDG (ração) como uma segunda linha de receita. Elas começaram a operar projetos novos num cenário bastante desafiador pelas incertezas do etanol. Então a gente pode acabar limitando a capacidade de investimento num setor crescente, e muito positivo para o país, por conta de inseguranças políticas”, avalia Leonardo Alencar.
China recuou no uso do etanol
Já era para o mercado de etanol global ter avançado significativamente, não fosse a desistência da China dos planos anunciados em 2017, de mistura obrigatória de 10% à gasolina a partir de 2020. Os chineses recuaram após queda nos estoques de milho do país e capacidade limitada de produção do próprio etanol. Isso faz Ana Zancaner, da corretora Czarnikow, ver com cautela as possibilidades de uma nova commodity.
“No longo prazo, pode haver oportunidades. Mas me pergunto se os países vão querer acrescentar uma outra dependência num setor estratégico como o de combustíveis. Muitos já são dependentes no petróleo e na gasolina, por que vão querer instituir uma outra dependência?”, questiona, citando o exemplo chinês.
Feitas as
ressalvas, a analista entende que se houvesse uma política de preços livres
para a Petrobras, os dois subprodutos da cana-de-açúcar estariam diante de
alguns de seus melhores anos. Permanecem, contudo, outros desafios estruturais.
Mais de 80% do adoçante é exportado pelo porto de Santos, que também concentra 40% dos embarques de milho e 25% de soja. Como os terminais de açúcar operam igualmente com grãos, o gargalo se acentua. Na avaliação da corretora Czarnikow, as exportações de açúcar estão limitadas, pela logística, a 2,6 milhões de toneladas mensais.
“Não importa se o Brasil produzir mais de 36 milhões de toneladas, e esse açúcar não puder ser exportado. É um problema logístico que pode piorar no ano que vem. Precisamos adicionar capacidades nos gargalos, não só para carregar os navios, como também no recebimento do açúcar nos terminais”, alerta Ana Zancaner.