Taxa no importado e menos competição: a receita do governo para o carro elétrico nacional

A retomada da cobrança de imposto na importação de carros elétricos abre um novo capítulo na longa história dos incentivos do Estado à produção de veículos em solo brasileiro, em geral à custa de barreiras a importados.

A taxação, anunciada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), atende a um pleito de montadoras estabelecidas no país. Segundo os comunicados oficiais, o objetivo é “desenvolver a cadeia automotiva nacional neste setor, acelerar o processo de descarbonização da frota brasileira e contribuir para o projeto de neoindustrialização do país”.

O entendimento é de que limitar a competição – em vez de incentivá-la – vai impulsionar a indústria brasileira. Foi o que levou o país a proibir a importação de veículos entre 1976 e 1990 e a dificultá-la em outras ocasiões – como a partir de 2012, com o Inovar-Auto do governo Dilma Rousseff (PT), que manteve o país distante da vanguarda tecnológica e foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

“Temos de estimular a indústria nacional em direção a todas as rotas tecnológicas que promovam a descarbonização”, disse o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin (PSB).

Por trás das alardeadas boas intenções, está o risco de que as montadoras se acomodem sob a proteção governamental, como já ocorreu antes. Quem perde é o consumidor, que de imediato pagará mais caro pelos elétricos, em troca de um suposto benefício no futuro – o desenvolvimento de uma cadeia de produção local.

A taxação sobre os carros elétricos importados estava zerada desde outubro de 2015 e sua continuidade era uma demanda dos vendedores de carros elétricos para desenvolver o mercado no Brasil. Os fabricantes de automóveis no país, por outro lado, sustentavam que tais incentivos poderiam prejudicar a produção local.

A Câmara de Comércio Exterior (Camex), do Ministério do Desenvolvimento (MDIC), bateu o martelo e decidiu pelo fim da isenção. A taxação subirá gradualmente conforme o modelo (elétricos “puros”, híbridos leves ou híbridos plug-in), chegando a 35% em julho de 2026 – que é o imposto cobrado, hoje, dos importados movidos a combustão.

Atualmente, os elétricos têm isenção (imposto zero) e os híbridos recolhem 4%. O primeiro aumento entra em vigor já em janeiro de 2024, quando as alíquotas sobem para 10% e 12%, respectivamente.

De 2024 a julho de 2026, parte das importações continuará sendo feita com imposto reduzido ou zerado, por meio de cotas decrescentes. Entre janeiro e julho do ano que vem, por exemplo, as empresas terão direito a importar US$ 130 milhões em híbridos leves, US$ 226 milhões em híbridos plug-in, US$ 283 milhões em elétricos puros e US$ 20 milhões em caminhões elétricos.

Em conversas com jornalistas, importadores admitem que esperavam que o imposto fosse subir em algum momento – mas não de forma tão abrupta. A taxação foi anunciada no último dia 10, para valer dali a menos de dois meses.

Governo fala em incentivar produção; setor de elétricos vê insegurança para investir

O objetivo da taxação, segundo o MDIC, é incentivar a cadeia produtiva local e nacionalizar a produção, ou seja, atrair estrangeiras para fabricarem automóveis elétricos aqui.

De um lado, a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (Abve) diz que a decisão atende ao lobby das associações que defendem os combustíveis fósseis. O grupo critica, ainda, que a médio prazo a medida projeta uma sombra de insegurança às empresas que pretendem fazer ou já anunciaram investimentos na fabricação de veículos elétricos e híbridos no Brasil.

“O resultado será muito ruim para os investidores e para o mercado. Vai encarecer o preço dos veículos elétricos e híbridos no Brasil e afetará as decisões de investimento das empresas que apostavam em regras estáveis para produzir veículos elétricos em território nacional”, pontuou o presidente da Abve, Ricardo Bastos.

O executivo também é diretor de relações governamentais da chinesa GWM. A companhia comprou uma fábrica desativada da Mercades-Benz e pretende começar a produzir no Brasil no ano que vem.

A Abve também considerou a decisão do governo federal intempestiva: “Ela foi anunciada antes de o próprio governo ter definido qual será a futura política automotiva brasileira, já que a medida provisória sobre o novo programa Mobilidade Verde e Inovação-Mover [que substituirá o atual Rota 2030] ainda nem foi enviada ao Congresso Nacional”.

De outro lado, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) endossou a decisão do governo e a considerou grande avanço para o mercado e a concorrência, para garantir previsibilidade de investimentos das novas e das tradicionais fabricantes.

Para a entidade, o período de isenção nos últimos oito anos foi importante, mas também suficiente para a introdução dessas tecnologias no Brasil. “O aumento gradual do imposto permitirá ainda a importação desses veículos sem grandes impactos nos próximos anos”, disse a Anfavea, em nota.

“É preciso haver um equilíbrio entre a velocidade da eletrificação e a capacidade econômica do consumidor brasileiro, para que haja uma efetiva renovação de frota, e não uma pressão regulatória excessiva que empurre os clientes para modelos usados, mais poluentes e inseguros”, disse o presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite.

“Por isso o Brasil deve aproveitar a vantagem do etanol e outros biocombustíveis para fazer uma transição para os elétricos sem sobressaltos e com alto nível de descarbonização, na comparação com outros países que não têm essas alternativas de combustíveis renováveis e sustentáveis”, emendou o dirigente.

Chama atenção o fato de que as montadoras estabelecidas no Brasil também tinham o benefício da isenção ao importar veículos elétricos – e mesmo assim pediram pela volta do imposto.

Para alguns observadores do mercado, a razão é simples: dificultar a concorrência. A “invasão” de elétricos chineses nos últimos tempos, facilitada pelo imposto zero, obrigou marcas tradicionais a baixar preços dos seus modelos e, consequentemente, margens de lucro.

Para especialistas, barreira prejudica o consumidor

Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo entendem que o governo brasileiro foi protecionista com as montadoras instaladas no país – limitando a competição e dificultando o acesso do consumidor – e deixou de lado o desenvolvimento do mercado.

Na avaliação deles, as fábricas de automóveis no Brasil já receberam muitos incentivos ao longo das últimas décadas e precisam se atualizar, em vez de fazer pressão para barrar as tecnologias que já são realidade lá fora.

“A volta da taxação é ruim. Todo método de protecionismo acaba não desenvolvendo a indústria nacional”, diz Murillo Torelli, professor de Tributação no curso de Ciências Contábeis da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Para ele, a medida vai atrasar a eletrificação do mercado nacional. “As montadoras no Brasil sempre tiveram muita proteção do governo. O mercado automotivo é um grande filão de arrecadação pro governo, desde a fase produtiva até manutenção, como o IPVA”, diz.

Para o economista Raphael Galante, da Oikonomia Consultoria Automotiva, taxar os importados elétricos é uma barreira de entrada que não incentiva a eletrificação no mercado brasileiro.

“Muitos países estão surfando na onda e no Brasil isso vai retardar por décadas o que levaria dez, 20 anos para acontecer”, diz. “A concorrência é o melhor meio de evoluir. Mas é mais fácil, rápido e pratico ‘matar’ a concorrência do que investir na eletrificação própria”, acrescenta.

Segundo ele, após a volta da taxação, quatro marcas chinesas que estavam se reunindo com concessionárias para avaliar vender carros no Brasil pisaram no freio. “Pararam os planos e agora estão revendo”, diz.

Mas a decisão do governo também tem defensores. Antônio Jorge Martins, coordenador e professor de cursos automotivos na FGV, acredita que a volta do imposto privilegia a nacionalização, ou seja, a produção de veículos elétricos brasileiros pelas empresas que decidiram investir no país.

O especialista avalia que, à medida que comecem a produção de elétricos aqui, é justo que haja cobrança de impostos sobre os importados. “Bom é ter nacionalização paulatinamente, criando competição, que todos evoluem no futuro”, diz.

Assim como os demais, porém, Jorge defende que a competição é o melhor caminho. No exterior, diz ele, a disputa vem se intensificando. Tesla e GWM estão ganhando espaço, enquanto montadoras tradicionais ficam para trás por não conseguirem acompanhar o ritmo.

“As fábricas dessas novas tecnologias estão aumentando o grau de competitividade e afetando essas empresa tradicionais. Vai bater no Brasil em algum momento”, diz.

Carros elétricos no Brasil ainda estão na “primeira marcha”

Hoje o Brasil não produz veículos 100% movidos a eletricidade, apenas híbridos. Todos os elétricos puros são importados da Europa, Estados Unidos e Ásia, principalmente da China.

Essa realidade começa a mudar com a instalação, no Brasil, de duas fabricantes chinesas, a BYD e a GWM. Ambas já vendem carros elétricos e híbridos no país e, portanto, testaram o mercado.

A BYD anunciou investimento de R$ 3 bilhões para instalar três linhas de produção dentro de um mesmo complexo fabril, em Camaçari, na Bahia, onde até 2021 funcionava a Ford.

De acordo com a BYD, o polo industrial baiano será o maior da companhia fora da China. “O que é uma mensagem clara de como a companhia acredita, aposta e investe a longo prazo no potencial do mercado brasileiro, um dos mais importantes do mundo”, diz a empresa.

A Great Wall Motors (GWM), por sua vez, comprou a fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP), desativada desde 2020 e tem planos de começar a produzir em 2024.

Nos últimos dois meses os eletrificados representaram quase 5% das vendas de leves no país, segundo a Anfavea – em outubro, os exclusivamente elétricos responderam por 1,1% das vendas e os híbridos, por 3,5%.

A Anfavea sustenta que, com a produção nacional, a fatia dos elétricos no mercado de veículos leves chegue a algo entre 12% e 22% em 2030 e, dependendo do cenário, de 32% a 62% em 2035.

O processo de eletrificação de carros é bastante discutido pelo mercado, que antevê as operações e investimentos. Mas antes de uma expansão mais forte do número de carros elétricos rodando pelo país, há desafios bem relevantes que precisam ser sanados.

Um deles é o preço. Um veículo elétrico mais básico custa a partir de R$ 150 mil. Há ainda a necessidade de produção local de baterias para reduzir os custos da tecnologia e os investimentos em infraestrutura, tais como geração de energia, linhas de transmissão e criação de pontos de recarga.

“A popularização dos veículos elétricos no Brasil é um passo importante para a sustentabilidade e a redução das emissões de carbono. No entanto, é fundamental encontrar um equilíbrio que proteja o mercado nacional, ao mesmo tempo em que não inviabilize a aquisição desses modelos devido ao aumento nos preços”, comenta Luca Cafici, CEO da InstaCarro.

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