Diário de um Detento: videoclipe sobrevive à ação do tempo

O relógio anda em câmera lenta para o videoclipe da música Diário de um Detento, do Racionais MC’s. Gravado há 25 anos, em 1997, a produção dirigida por Maurício Eça continua a ser referência e já pode ser tratado como um clássico da música nacional. O Olhar Digital conversou com Eça em uma entrevista exclusiva, onde ele discutiu o sucesso da obra, e o que mudou na indústria de lá para cá.

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Duas décadas e meia depois de visitar a Casa de Detenção de São Paulo, antiga penitenciária da Zona Norte de São Paulo – conhecida popularmente como Carandiru -, Maurício Eça se lembra de muitos daqueles dias em 1997 em que ele, um diretor ainda em começo de carreira, aceitou o desafio de dirigir o videoclipe da música Diário de um Detento.

Hoje um marco na história do rap nacional, a música foi lançada naquele mesmo ano dentro do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, o quarto dos Racionais MC’s, compostos pelos rappers Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay.

“Eu já tinha uma ideia muito clara que era uma música de oito minutos e que contava uma história. O Brown é um grande narrador, é um grande roteirista. A letra por si só, ela é muito visual. Eu costumo falar que um videoclipe começa com uma boa música. E no caso eu tinha uma excelente música, Diário de um Detento,” exaltou ele.

Diário de um Detento tem em sua letra três datas: os dias 1º, 2 e 3 de outubro de 1992. Ou seja, um dia antes, o dia em si e um dia depois do Massacre do Carandiru, chacina na penitenciária em questão que matou 111 detentos no dia 2 de outubro daquele ano.

Apesar de já conhecer o Racionais MC’s antes de se envolver no projeto, Eça disse só ter entendido o tamanho que aquilo tomaria mais tarde. “Eu não tinha noção da força dessa música ainda, e fui tendo cada vez mais que eu tomava contato com o projeto, com essa história toda.”

“Eu fiz uma reunião com o Racionais, com o Mano Brown, onde ele me contou sobre o que representava essa música, a importância de se retratar o massacre de 1992,” contou Eça. “O quanto a música expressava o cotidiano do detento e o que ele viveu com essa história horrorosa que aconteceu.”

“De madrugada eu senti um calafrio

Não era do vento, não era do frio”

– Diário de um Detento – Racionais MC’s

Depois de ouvir a proposta de Mano Brown para o videoclipe, que envolvia gravar dentro do Carandiru, Maurício Eça disse ter ficado apreensivo se eles conseguiriam ou não a autorização para isto. Ele afirmou ter feito uma proposta diferente para o rapper. “Se a gente não conseguir filmar [no Carandiru], a gente tenta reproduzir alguma coisa em estúdio”, o diretor disse a Brown, mas a resposta não foi a que ele esperava: “Não, você não tá entendendo. Ou é lá, ou não tem clipe,” escutou do rapper.

Captura de tela do videoclipe “Diário de um Detento”, do grupo Racionais MC’s. Imagem: Racionais MC’s/Youtube

Em outro momento da entrevista, Eça comentou sobre a intenção dos videoclipes de hip hop da época em transmitir a verdade. “Eu acho que os videoclipes de hip hop […] tinham uma questão muito vinculada com a verdade. Com se passar no clipe a realidade. Muitas vezes fugindo das elucubrações, das fantasias, das metáforas. Então eram clipes muito reais e muitas vezes expressando com imagens o que estava se falando, mas de uma forma realista,” afirmou o diretor. “Uma coisa que o Mano Brown sempre falava, é que tem que ser de verdade.” E assim foi.

A gravação

Apesar da apreensão de Maurício Eça, a autorização para filmar dentro do Carandiru foi concedida por um juiz. Os problemas, contudo, não pararam por aí. “A gente chegou de manhã no Carandiru com a equipe, com os Racionais, e aí o diretor do Carandiru na época falou: ‘Não, mas como assim filmar? Vocês não vão filmar, tão loucos?’,” contou Eça sobre a fala do diretor da penitenciária.

O grupo argumentou com o diretor do Carandiru, que eventualmente concedeu autorização para a filmagem, só que com uma série de limitações. “Primeiro que não tinha sido autorizada a entrada no Carandiru antes da filmagem. Porque normalmente, quando a gente faz uma filmagem, a gente faz um tech scout, uma visita técnica na locação, para entender qual o melhor lugar, onde a luz está melhor em tal horário, aonde eu quero contar tal coisa. A gente não foi autorizado a isso,” explicou Eça, explicando ainda que houve limitações nos equipamentos, como a proibição de entrada de tripés.

Dada a ausência da visita técnica anterior à filmagem, o grupo estava prevenido e levou equipamentos a mais para evitar contratempos durante a gravação. “O diretor de fotografia não saberia exatamente o que teria lá, então ele se precaveu,” contou o diretor.

“A gente queria mostrar, expressar com imagens que existiam seres humanos lá dentro vivendo, com histórias. Então a minha ideia era fazer uma coisa documental, mas com uma estética, com um cuidado de enquadramento, e de ter momentos de câmera lenta,” explicou.

Eça contou que o clipe foi filmado em película de 16 mm, e não em HD, porém a edição já foi digital. “Estetizar um pouco essa realidade, sem ser um documentário cru, mas com uma estetização que vieram a chamar muito tempo depois de ‘Cosmética da Fome’. Não, não tem nada a ver. Eu acho que a gente queria mostrar esses seres humanos que têm lá dentro, que tem histórias, que têm vidas, que têm muito a contar”, relatou.

“Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento”

– Diário de um Detento – Racionais MC’s

“Eu acho que o clipe mostra um pouco isso, ele dá voz a tanta gente, a tantos seres humanos que tão lá dentro em condições muitas vezes precárias,” refletiu Eça. “E ao entrar, a gente entendeu que os Racionais eram porta-vozes desses caras.”

Além das imagens gravadas dentro do Carandiru, o videoclipe tem algumas cenas de estúdio, e imagens de arquivo do massacre. “Foi um clipe muito intenso de se fazer, mas, ao mesmo tempo, a gente não tinha noção do que estava fazendo,” revelou Eça. “Eu nunca imaginaria o que iria acontecer com quem ia assistir esse clipe.”

diário de um detento
Captura de tela do videoclipe de Diário de um Detento, do Racionais MC’s. Imagem; Racionais MC’s/Youtube

A repercussão de Diário de um Detento

O que aconteceu foi que o videoclipe se tornou um grande sucesso, até então inimaginável para o diretor novato Maurício Eça. Era 1997, então “YouTube” era uma palavra sem significado na época, e o termômetro para entender como o videoclipe estava agindo no público era o canal da MTV, na época quase totalmente focado em music video.

“[O videoclipe] estreou na MTV numa coisa meio nichada. [A MTV tinha] programa de metal, programa de hip hop, programa de lado B. E o clipe dos Racionais extrapolou tudo isso. Ele não passava só no programa de hip hop, ele entrou nas paradas MTV. Então era muito doido, um clipe que tem palavras fortes, tem imagens fortes de violência, passando no horário nobre da MTV, no tal Top 10. Além do que, um clipe de oito minutos que ocupava de dois a três clipes normais de três minutos,” explicou Eça.

Além do sucesso no canal MTV, o videoclipe venceu dois prêmios no antigo MTV Video Music Brasil, em 1998, nas categorias de Escolha da Audiência e Videoclipe de Rap, além da indicação ao prêmio de Videoclipe do Ano. O clipe de Diário de um Detento também entrou para o acervo Made in Brasil, de vídeos icônicos do século do Itaú Cultural, a MTV o considerou como o segundo clipe mais importante de sua história e recentemente ele recebeu uma menção na revista GQ, entre os 6 maiores videoclipes brasileiros de todos os tempos.

“Minha vida não tem tanto valor
Quanto seu celular, seu computador”

– Diário de um Detento – Racionais MC’s

O videoclipe de Diário de um Detento foi adicionado ao canal do Racionais MC’s no YouTube em 2013, e de lá para cá já acumula quase 5 milhões de visualizações, mesmo chegando à plataforma (lançada em 2005) cerca de 15 anos depois do seu início.

O que mudou na produção de videoclipe?

“Videoclipe sempre foi uma forma de divulgação, de venda, de uma música ou de um artista, de uma imagem. E com o advento da MTV no Brasil nos anos 1990, a gente tinha um canal de music video,” destacou Maurício Eça.

Mas muita coisa mudou desde o final dos anos 1990. “Quando eu fiz o videoclipe dos Racionais, ele foi feito em película, em cinema, não era barato. Não era todo artista que tinha essa condição,” contou o diretor, destacando ainda que, naquela época, a televisão, principalmente a MTV, era essencial para artistas novos.

“Na hora que entrou o YouTube, vieram várias questões. Primeiro que já com o YouTube, fazer videoclipe se tornou mais barato. Porque já tinham câmeras digitais, até o próprio celular hoje. E pouco a pouco as pessoas foram entendendo que era só fazer e botar no YouTube e tentar divulgar, que você tinha uma forma de se divulgar.”

“Não, já, já, meu processo ‘tá aí
Eu quero mudar, eu quero sair”

– Diário de um Detento – Racionais MC’s

“Ao mesmo tempo que tem essa acessibilidade para muita gente, também existem videoclipes caros hoje, continuam sendo produzidos videoclipes caros,” destacou o diretor. “Mas eu acho que os investimentos são diferentes do que tinha antigamente. Até porque se exibe menos na TV, né? Mas você vê, tem artistas que ainda sabem da importância do videoclipe para sua imagem e investem [nisso].”

A cantora Anitta foi um exemplo citado por Eça: “A Anitta faz clipe de todos os singles, ela sabe o poder do clipe na questão que a imagem dela é muito importante como artista pop, como expressão visual. Que veio desde a Madonna, do Michael Jackson.”

Apesar da vantagem de existirem mais oportunidades para artistas produzirem seus videoclipes com uma qualidade muito superior ao que era possível no passado, e com um baixo orçamento, existe um excesso de informação. “[Naquela época] você sabia: ‘ah, tal semana lançaram quatro clipes incríveis’. Você sabia. Hoje é tanto, é tanta informação, tanto conteúdo, que se perde um pouco, né? Então a relação do YouTube é diferente nesse sentido.”

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Diário de um Detento como referência

Mesmo depois de quase 25 anos de seu lançamento, o videoclipe de Diário de um Detento continua a ser referência no mundo da música, e também do cinema.

“Querendo ou não, eu fiz Diário de um Detento antes de tanto outros trabalhos icônicos. Como Cidade de Deus. Como o clipe do O Rappa, Minha Alma. O próprio Carandiru, o longa. Eu fiz o Diário de um Detento antes de todos esses trabalhos. Então, assim, de uma forma ou de outra ele foi uma referência,” reconheceu o diretor.

“Uma coisa que às vezes a gente não acredita [é que ainda] tem relevância para pessoas tão jovens, por ser uma linguagem totalmente diferente das coisas que são feitas hoje,” refletiu Eça. “É uma música muito potente, são imagens muito potentes, que trazem essa sucessão, que faz algo realmente difícil de explicar muitas vezes.”

“É uma música excepcional, um assunto muito forte e até hoje muito importante de ser discutido,” falou o diretor. “E o clipe, as imagens junto com a música, music video, […] compõem realmente uma obra que continua ali, continua referência, continua muito potente. Eu mesmo quando assisto de novo muitas vezes me surpreendo com coisas e me dão lembranças daqueles dias e de tudo o que aconteceu depois disso.”

Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento

– Diário de um Detento – Racionais MC’s

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Fonte: Olhar Digital

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