No Sindicato Rural de Campo Grande estão filiadas 140 mulheres que atuam diretamente no campo
No dicionário, recoluta significa encontrar, buscar, recuperar um animal que se perdeu da tropa. Para as primeiras mulheres que participavam do Sindicato Rural de Campo Grande, o termo era usado para agrupar a turma feminina nas reuniões que aconteciam na antiga sede, na Acrisul (Associação dos Criadores) que possuíam a mesma diretoria na época.
Quem estava entre elas era Maria Inês Garcia Bunning, 81 anos, hoje sócia-proprietária da Agropecuária Duas Meninas. “Antigamente a gente pensava muito em agregar e congregar. Tinham as reuniões, os encontros e eventos que organizávamos. Era uma época maravilhosa”, relembra.
Conhecida por alguém a frente do seu tempo, Maria Inês acabou se transformando em uma líder nata. Sabendo da importância de reunir pessoas com o mesmo interesse por um bem comum, como fazem os sindicatos e associações que ela participa ativamente até hoje, a pecuarista foi sócio-fundadora da BPW (Associação de Mulheres de Negócios e Profissionais) no país e coordenadora do grupo da América Latina.
“Entendo que não precisamos ir ao campo direto. Dá para participar com ações organizadas, sempre chamando para todas trabalharem juntas”, ponderou. Essas ações contribuíram significativamente para um cenário ampliado às mulheres para empreender e empoderar. A associação abriu espaços intelectualmente ativos, altamente produtivo e socialmente representativo.
Filha de pais fazendeiros, Maria Inês sempre teve contato com a terra desde criança. A família dela decidiu investir em frigoríficos antes mesmo das exportações serem grande aliada do agronegócio.
A necessidade de viagens do marido para as propriedades que possuíam no interior do Estado se tornaram mais frequentes. Para evitar a distância, ela e as duas filhas, Ana Lia e Graziela, vieram para Capital há 41 anos.
Filha mais velha, ela acompanhava a lida dos negócios da família desde muito jovem. “Amo a simplicidade e o cheiro da terra”, pontuou. E foi no dia a dia, na convivência com os homens que ela afirma ter adquirido respeito.
“Nunca sofri preconceito por ser mulher. Não podemos chegar com medo. Tem que chegar para mandar. Acho que faltou coragem dos homens para me desrespeitarem. Nada impede uma mulher. É só querer fazer e ter humildade.”
O aprendizado com a vida fez com que as duas filhas do casal seguissem o curso natural da origem. “Esse sentimento tem que brotar da pessoa e amadurecer. É como uma semente, tem que dar tempo para ela brotar”, comenta.
As meninas chegaram a fazer faculdade, se formaram em áreas bem diferentes do agronegócio e viraram fazendeiras. “Hoje elas que tocam tudo para a gente. Dei a oportunidade de escolherem a profissão, não quis bloquear a vida delas. Tem que deixar brotar naturalmente. Hoje estão entrosadíssimas nos negócios. É se começasse do meio de vai ampliando, como um grande caracol. Chega uma hora que não tem mais jeito. Não tem como escapar.”
Persistência – “Só começaram a me respeitar quando eu demiti um funcionário”. O relato verdadeiro é da pecuarista e suinocultora, Eleíza Moraes, 45 anos, sócio-proprietária do Rancho Alegre, localizada a 42 km de Campo Grande.
Nos últimos 18 anos da vida dela houve a transformação de uma administradora da área de cosméticos da Capital para a mulher que comanda os negócios da família. “Teve a necessidade de informatizar a suinocultura dos meus pais. Eu comecei indo todos os sábados da semana. Foi dificultoso no início os olhares dos funcionários. Eu sentia que eles me olhavam e pensavam ‘o que essa dondoca da cidade veio fazer aqui?’”, afirmou.
Com o tempo e o incentivo do pai, ela foi se apaixonando pela lida no campo e o ‘bichinho do agro’ pegou Eleíza de jeito. “Ele nunca foi machista e tudo o que sei aprendi com ele. Vi que tinha a necessidade de dedicar mais tempo aos negócios e decidi largar meu emprego para me aprofundar na área”, diz ela que acabou inclusive se tornando mestre em Gestão Agroindustrial.
Segundo a pecuarista, a persistência é o principal ingrediente para se consolidar na área. “Quando a gente quer, a gente consegue. Os funcionários eram machistas. Me desfaziam por não atender uma ordem vinda de uma mulher. Era algo cultural. Com o tempo as coisas vão se transformando. Hoje é uma outra relação que construí com os 80 funcionários que temos.”
Eleíza conta que teve momentos difíceis na trajetória. “Algumas noites pensei em desistir. Foram noites duras, mas isso vejo que acontece em todo lugar. Hoje não abandono por nada nesse mundo. Tem que ser persistente, humilde para entender primeiro para ser mais firme no que vai fazer. Buscar informação e não desistir na dificuldade. Eu queria provar que era capaz. A mulher no agro não é de fachada, porque é filha ou mulher de alguém. Não estamos de enfeite. Somos profissionais e queremos render”, pontuou.
Meninas da joia – O paulista Carlos Novaes Guimarães jamais poderia imaginar a importância do papel da família para a pecuária nacional, quando resolveu comprar a Fazenda Lontra, em Miranda, no ano de 1976.
O empreendimento que a princípio era um hobby ganhou proporção profissional com investimento de gado de pista e animais de vitrine. Foi então que decidiu ampliar os negócios com melhoramento genético dos animais de elite e adquirir o antigo Nova Índia, hoje o Joia da Índia.
Pai de três filhos, um menino e duas meninas, as propriedades hoje são tocadas pelas irmãs Carla e Cláudia Novaes. Mais do que ‘filhas do seu Carlos’ elas se tornaram as ‘Meninas da Joia”.
Administradora e médica veterinária, respectivamente, elas são responsáveis por manter a qualidade genética do plantel e garantir os tradicionais leilões anuais Joia da Índia que já estão na sua 32ª edição em 2022. A família foi pioneira em relação a genética animal, com uma central de coleta de material, a única na região Centro-Oeste.
Mesmo sendo filha do fundador, Cláudia é categórica em afirmar que o caminho foi cheio de pedras por ser mulher. “A gente segue na profissão porque somos teimosas. Antes eu ficava muito brava, mas agora tenho pena de quem pensa assim. Até hoje escuto frases como ‘ela brinca de ser fazendeira'”, revela.
Com o legado do pai, as irmãs aprimoraram o empreendimento junto com o Programa de Melhoramento Genético da Embrapa – Geneplus e ganharam respeito após anos de trabalho duro.
“Tem sido uma mudança de geração. São formas diferentes de tocar os negócios, porque o mundo mudou. Não somos mulheres que vão em reuniões apenas para acompanhar o pai ou o marido.”
A caçula acorda de madrugada todos os dias e vai até a propriedade sozinha. “Vou feliz da vida. É uma sensação de liberdade. Vejo que a mulher quando é boa no que faz, ela é muito boa. Eu e minha irmã nos damos muito bem. Temos a ajuda dos nossos maridos. Nos leilões nós quatro nos entendemos só pelo olhar. Somos movidas pelo desafio e a gente se cobra muito para não poder errar.”
Ela acredita que ainda vai levar muitos anos para que exista igualdade no campo. “Não quero estar na frente e nem atrás, quero estão ao lado do homem. Precisamos estudar muito mais e nossa batalha é longa. Acredito que vai levar uns 100 anos. Mas sou teimosa e converso muito sobre o assunto com meus filhos”, garante.
Números – O último levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrado pelo Censo Agro 2017 identificou apenas 19% dos estabelecimentos agropecuários comandados por mulheres no país.
São 946.075 produtoras brasileiras diante de 4.110.450 propriedades nas mãos masculinas. Quando analisados os números por Estado, Mato Grosso do Sul o percentual é o mesmo, com 13.638. Sendo que o restante, 56.832 das propriedades estão nas mãos dos homens.
A revolução feminina na agricultura moderna acontece a passos lentos, mas com muito impacto. Protagonistas na continuidade dos negócios familiares, elas sentam de igual para igual na mesa de debates ainda com mais presença masculina.
Em Campo Grande, o Sindicato Rural possui hoje 140 filiadas de um universo de 500 integrantes. O número veio crescendo aos poucos desde que fizeram o levantamento. Entre 2005 a 2010 eram apenas 86 mulheres.
O presidente da entidade, Alessandro Coelho, explica que aos poucos as mulheres estão ocupando mais espaços nas propriedades. “Enquanto na construção civil as mulheres já ocupam, há algum tempo, todas as funções do processo construtivo e nas empresas, de vários segmentos, elas estão nos mais altos cargos; nas propriedades rurais elas ainda estão, predominantemente, nas cozinhas. Da porteira para fora, elas ganharam algum espaço, mas ainda são minoria nas profissões ligadas ao agronegócio e nas entidades representativas do setor.”
Ele explica que o cenário está mudando. “Apesar de tradicionalmente a agropecuária ter sido uma atividade majoritariamente masculina, isso tem mudado de forma significativa e temos influenciado com ações práticas em Mato Grosso do Sul. Desde a nossa primeira gestão, trabalhamos com a finalidade de tornar o Sindicato Rural uma entidade referência de atuação feminina no agro. Temos várias possibilidades de atuação e estamos de portas abertas para qualquer ideia que some a esse objetivo”, pontuou.
Na diretoria ele faz questão de dar espaço e voz para as mulheres. “Entre os nove contratados diretos, que movimentam o Sindicato Rural de Campo Grande, apenas dois são homens, a secretaria executiva, contabilidade, RH quase 100% dos cargos preenchidos por mulheres. No campo, temos algumas ações para incentivar o protagonismo das mulheres. E além dos projetos próprios, temos parceria com entidades, como a BPW, que realiza anualmente um leilão de gado, apenas de mulheres produtoras. É uma iniciativa sensacional que fazemos questão de apoiar todos os anos.”
Alessandro ainda ressalta o evento destinado exclusivamente para elas. “Aqui no Sindicato, temos o “Papo de Mulher”, um evento para promover discussões sobre temas importantes que envolvam mulheres e liderança no agronegócio. O evento que tinha periodicidade mensal e tinha por finalidade identificar possíveis líderes e novos projetos para o Sindicato, foi interrompido pela pandemia e deve ser retomado ainda este ano.”