Um dos riscos de adaptar um episódio tão trágico e recente quanto o incêndio na Boate Kiss é fazer com que essa memória ainda tão viva na mente do público contamine a história que está sendo contada. Ao permitir que as recordações se sobreponham ao roteiro, é muito fácil perder o foco daquilo que se pretende contar — e é essa armadilha que Todo Dia a Mesma Noite monta para si própria.
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A nova minissérie da Netflix que reconta a triste noite de 27 de janeiro de 2013 que matou 242 jovens e como isso impactou não só as famílias das vítimas, mas toda a cidade de Santa Maria (RS) é muito bem intencionada. Contudo, ela tem dificuldade de lidar com essa ferida ainda aberta.
Ao não se distanciar do fato, tanto público quanto a própria produção se deixam levar pela emoção e se focam muito mais no horror do incêndio e na exploração do sofrimento do que na história que deveria ser o cerne da adaptação.
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Todo mundo lembra de como o incêndio foi chocante e os relatos das vítimas e das equipes de resgate são assombrosos. Só que não é sobre isso que a minissérie se propõe contar.
Todo Dia a Mesma Noite parte do livro homônimo escrito pela jornalista Daniela Arbex que acompanha a luta dos pais das vítimas para levar os responsáveis pela tragédia à Justiça — só que isso é ofuscado por essas memórias que não só invadem, mas atrapalham o andamento do seriado.
A exploração do sofrimento
Se há algo que o jornalismo sensacionalista ensina é que o sofrimento vende. As grandes tragédias despertam curiosidade e geram um fascínio que nos levam a procurar detalhes sobre o que e como aquilo aconteceu. É algo que fazemos mesmo de forma inconsciente.
E o principal desafio de Todo Dia a Mesma Noite enquanto uma produção audiovisual seria driblar essa nossa tendência de fazer diferente — contar a história além da história conhecida pelos jornais. Só que ela não consegue fazer isso e cai na armadilha de se apegar a esse sofrimento que é tão apelativo e sedutor.
Pior do que isso: em muitos momentos, a série usa isso como muleta para mascarar suas próprias deficiências. Do roteiro que não chega aonde deve às atuações medianas de parte do elenco que dispara um gauchês caricato cheio de “tchê” e “bah” que não convence, o horror da realidade serve como um atenuante. Afinal, por que se incomodar com esses “detalhes” quando a história mostrada é tão triste e chocante?
O ponto é que estamos falando de uma série e não de uma matéria jornalística. E, nesse caso, o fato em si é menos importante do que o modo como ele é apresentado na tela. A jovem que sofre ao trocar as ataduras do braço queimado é algo que certamente aconteceu, mas que não acrescenta nada a essa narrativa. No fim, ela está ali só para chocar o espectador, como tantos outros momentos parecidos.
A mesma coisa acontece com a direção, que também se deixa levar por essa emoção e se perde nos rumos que quer tomar. Isso é bem claro nos primeiros episódios, em que a ânsia por mostrar os corpos e o horror do resgate é tamanha que deixa de ser emocionante para ser apenas gratuito.
E é curioso notar como a minissérie perde a oportunidade de fazer cenas que são impactantes e fortes pela sutileza para apostar em algo que é graficamente desnecessário e de mau gosto, como a cena do velório.
E o resultado disso tudo é que Todo Dia a Mesma Noite perde o foco da história que ela realmente queria (ou deveria) contar, que é o sofrimento dos pais não pelo horror gráfico da tragédia, mas pelo que veio em seguida. É a ausência dos filhos e a impunidade em relação aos responsáveis pelo incêndio que faz com que quem ficou esteja vivendo aquele 27 de janeiro por uma década — e isso está muito diluído.
Ainda que a minissérie aborde essa luta dos pais, a trama que dá título à série acaba sendo escanteada diante desse fascínio pelo horror. O maior sintoma disso é que os últimos episódios tratam esse luto inacabado de forma superficial com uma sequência de saltos temporais que te impedem de sentir a dor desses personagens.
Mais uma vez, você entende o sofrimento deles não pelo que o roteiro apresenta, mas pela imagem da tragédia que o noticiário construiu. É mais um efeito de empatia do que resultado de uma boa narrativa construída.
A força de um elenco
Por isso mesmo, o esforço do elenco principal para fazer com que esse roteiro alcance a intensidade necessária é admirável. Ainda que a falta de foco de Todo Dia a Mesma Noite atrapalhe, todo o núcleo de pais está muito bem e consegue entregar os sentimentos necessários em cada cena — mesmo que a direção pese a mão em alguns momentos.
O destaque aqui fica para o trio Paulo Gorgulho, Thelmo Fernandes e Bianca Byington, que incorporam muito bem esses familiares e conseguem dosar dor e revolta na medida certa sem soar exagerado. Os estouros de Ricardo (Gorgulho) e a simplicidade de Pedro (Fernandes) são cativantes e mostram bem por que eles são dois grandes veteranos da dramaturgia brasileira.
Ao mesmo tempo, o talento desses atores também destoa demais de outra parte do elenco da série, que é mediano, quando muito. Os núcleos jovens têm dificuldade de entregar o regionalismo sem cair no caricato e até mesmo alguns nomes mais conhecidos também deslizam nesse roteiro.
E por mais que pareça detalhe, o excesso de “gauchês” se torna ruído e passa a atrapalhar tanto a interpretação dos atores quanto a absorção por parte do público.
Boas intenções
Todo Dia a Mesma Noite não é uma minissérie ruim, apenas muito limitada e que segue por alguns caminhos bastante equivocados, seja por se deixar levar pela emoção ou por algumas decisões ruins. Ao mesmo tempo, ela é muito bem intencionada e consegue mostrar bem o tamanho da tragédia e a revolta da falta de respostas.
O grande problema é que a produção sofre com falta de foco, a dificuldade de entender qual história quer contar e como fazer isso. Ora a série quer falar sobre o sofrimento dos pais na luta por justiça, ora quer graficamente expôr o horror de 27 de janeiro. Sem se decidir por qual caminho seguir, ela samba por cinco episódios e deixa de dar atenção a pontos que precisavam de mais cuidado.
Há muito o que se discutir sobre essa exploração do sofrimento e o próprio exagero que Todo Dia a Mesma Noite dá a certas situações que não acrescentam à narrativa. A série poderia ser a nossa Chernobyl, mas a falta de sutileza do roteiro e de cuidado na direção fazem essa oportunidade ir embora.
A grande “sorte” é que essa mesma memória que contamina a produção também atinge o público, que segue mais chocado pelo fato que inspirou a minissérie do que pelo modo como a história é conduzida por aqui. No fim, pelo menos conseguiu fazer com que a tragédia continue sendo lembrada pelo horror que foi.
Todo Dia a Mesma Noite está disponível no catálogo da Netflix.
Leia a matéria no Canaltech.
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