Crítica Anatomia de uma Queda | A morte como elemento de algo maior e mais grave

Anatomia de uma Queda começa com a morte de um pai, cujas primeiras testemunhas são seu filho cego e um cachorro; um ensejo digno de grandes mistérios de assassinato e tribunal. Logo, porém, percebemos que o longa de Justine Triet (Sibyl) é sobre algo muito maior do que isso, a ponto de o suposto crime, em si, ficar até em segundo plano.

São poucos os aspectos da produção que não assumem mais de um significado, aliás. Sendo assim, não dá para o classificar como suspense, trama jurídica ou até mesmo um drama por si só. Ele pode ser tudo ao mesmo tempo, mas também nada disso a cada nova cena. E é assim que o longa brilha, sacramentando sua posição como um dos melhores do ano.

50 centavos, um cachorro e muito mais

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Nada é o que parece em Anatomia de uma Queda, mais do que isso, tudo é absolutamente complexo. Começamos com uma entrevista da personagem principal, Sandra (Sandra Hüller, em uma das melhores atuações do ano) e seguimos com o garoto Daniel (Milo Machado Graner, também formidável) por um passeio corriqueiro com o cachorro Snoop (Messi, igualmente incrível), no que parece uma manhã normal cuja calma precede a tempestade.

O barulho de obra misturado a uma versão quase surreal do sucesso de 50 Cent, interpretado pelo conjunto alemão Bacao Rhythm & Steel Band, é prelúdio do caos. A morte de Samuel (Samuel Theis) é um momento que conta muito do que precisamos saber sobre estas pessoas, mas o espectador, claro, só percebe isso depois de ser fisgado pela possível tragédia, assassinato ou outra coisa no meio disso.

É exatamente o lugar em que Triet quer nos colocar, e seguimos por esse caminho quase sem perceber. Na medida em que Sandra é acusada de um crime que pode ou não ter cometido, começamos também a buscar indícios do bem e do mal. Principalmente quando percebemos, pouco a pouco, que as pessoas atrás da tela apresentam conflitos, vontades e desígnios complexos, conflitantes e absolutamente humanos. Algo que, na verdade, só aumenta nosso envolvimento com a história.

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Culpada ou inocente? Importa?

Como algumas das outras seleções do Oscar 2024, Anatomia de uma Queda também é um filme que usa situações dramáticas para contar uma história próxima dos espectadores. Todos são seres humanos que, agora, terão suas vidas expostas em um tribunal, diante do júri e da imprensa local, em um caso daqueles que assumem tons espetaculosos, como temos de tempos em tempos no Brasil.

Um casamento em frangalhos e uma família com abismos entre seus membros acabam servindo como argumento para um sistema judiciário altamente parcial e machista. O tribunal parece tentar mais confirmar uma visão pré-concebida do que representar parte do processo legal, enquanto quem assiste briga, concorda ou se vê provocado pelo que acontece no fórum.

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Temos longos diálogos que levam ao pico ou momentos tirados do contexto em um julgamento midiático e altamente parcial. Ao mesmo tempo, Anatomia de uma Queda usa longas cenas de câmera parada, focos nos olhos, trilha sonora pontual e uma sensação de quase placidez para falar sobre absurdos e traumas. É um contraste que incomoda e impulsiona a trama, mesmo nos momentos mais lentos.

Atuações potentes do trio principal ajudam a levar o longa adiante nesses platôs, que não devem ser confundidos com barrigas. Sandra, Daniel e Snoop, aliás, entregam alguns dos melhores trabalhos do ano e o cachorro poderia muito bem levar uma estatueta para a casinha. Mãe e filho, principalmente, fazem o espectador querer assumir uma posição de investigador e jurado, apenas para, no momento seguinte, perceber que há muito mais em jogo.

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O ponto principal de Anatomia de uma Queda, afinal, é a armadilha mordaz criada pelo argumento de Triet. Para muita gente, o filme pode até mesmo terminar com mais perguntas do que começou. Caso queira assistir de novo, faça isso, pois uma segunda sessão que fará com que a produção brilhe ainda mais em suas sutilezas.

Vale a pena ver Anatomia de uma Queda?

Em meio à popularidade do true crime, Anatomia de uma Queda apresenta o julgamento de um assassinato como contraponto. Por trás da morte, existe gente de verdade e desígnios igualmente comuns e complexos. Em duas horas e meia de projeção, nada é absoluto como a batida da música ou do martelo de uma juíza sobre a ruína clara de um casal, por mais que tentem fazer parecer que sim.

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Uma das poucas certezas que o novo longa de Justine Triet nos deixa é que ele será assunto de rodas de conversa, discussões acaloradas nas redes sociais e até teses de cinema. Acima de conclusões sobre o que causou a morte de Samuel ou a culpa ou não de Sandra, estão discursos que podem pegar de forma diferente para cada espectador. O caráter magistral do filme, porém, é indiscutível e sua complexidade narrativa e emocional mais do que justifica sua presença nas listas de melhores do ano.

Anatomia de uma Queda estreia nos cinemas brasileiros em 22 de fevereiro.

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