A Copa do Mundo e sua complexa regulamentação

Fifa instaurou processo disciplinar contra o México por cantos homofóbicos da torcida do país – Reprodução / Twitter (@FIFAWorldCup)

Copa do Mundo. A cada quatro anos (neste caso específico, quatro anos e meio), o mundo direciona sua atenção à principal competição de futebol masculino entre seleções, um dos principais eventos do esporte mundial, senão o principal.

Enquanto a absoluta maioria do público volta seus olhos aos gramados dos imponentes estádios do Catar, os profissionais envolvidos no evento se voltam às normas que regem a realização da competição. Nesse sentido, o principal “livro de cabeceira” é o Regulamento da Copa do Mundo, elaborado pela Fifa.

É esse regulamento que define, por exemplo, as datas de início e fim do evento: 20 de novembro e 18 de dezembro. A propósito, é interessante notar que esse ponto específico do regulamento (o segundo parágrafo do artigo 1.3) foi objeto de alteração aprovada pela Fifa poucos meses antes, em agosto de 2022; na versão original, a norma previa o início do torneio em 21 de novembro de 2022.

Mas, naturalmente, esse normativo vai muito além disso. Sua extensa abrangência é bem ilustrada pelo artigo 1.4: ele regulamenta os direitos, os deveres e as responsabilidades de todas as federações nacionais de futebol (no caso do Brasil, a CBF) participantes da Copa do Mundo. Suas normas, assim como todas as diretivas, decisões, diretrizes e circulares emitidas pela Fifa, são vinculantes a todas as partes envolvidas na participação, preparação e organização da competição. Não restam dúvidas, pois, de sua importância para o evento, sem prejuízo da necessária observância também de outros regulamentos da Fifa aplicáveis a cada caso concreto.

A propósito dos demais regulamentos aplicáveis, convém destacar o Código Disciplinar da Fifa, que identifica condutas passíveis de sanções disciplinares e as respectivas sanções. Incluem-se como infrações disciplinares não apenas ações cometidas pelos jogadores em campo, mas também condutas de fora das quatro linhas imputáveis a determinada seleção. Já nos primeiros dias de Copa do Mundo, foi possível observar pelo menos dois exemplos nesse sentido, com a Fifa instaurando processos disciplinares em face das federações do Equador e do México por cânticos homofóbicos das respectivas torcidas durante as partidas.

De acordo com a notícia, os processos disciplinares foram instaurados com base no artigo 13 do Código Disciplinar, que versa especificamente sobre discriminação. A norma apresenta escopo bastante abrangente, prevendo a aplicação de sanções a “qualquer pessoa que ofenda a dignidade ou integridade de um país, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas através de palavras ou ações desrespeitosas, discriminatórias ou depreciativas em relação a raça, cor da pele, etnia, origem nacional ou social, gênero, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, capacidade econômica, local de nascimento ou qualquer outro aspecto”. Além disso, também estipula que, quando a conduta proibida é praticada por torcedores de um clube ou seleção, esta se sujeita a multa de pelo menos 20 mil francos suíços; em caso de reincidência, a penalidade pode ser agravada.

Voltando ao Regulamento da Copa do Mundo, é possível encontrar disposições relativas a outro tema que tem causado controvérsia neste início de Copa do Mundo: as faixas dos capitães.

O artigo 30.2 dispõe que as faixas são fornecidas pela própria Fifa e devem ser utilizadas pelas equipes participantes, excluindo-se itens similares. Assim, com base nas informações publicadas nas mídias especializadas, o aparente entendimento da Fifa seria de que o uso de faixas diferentes pelos respectivos capitães, como pretendiam algumas seleções, implicaria em descumprimento do regulamento da competição, podendo ensejar sanções na forma do Código Disciplinar (cujo artigo 11 reitera que jogadores e seleções devem respeitar todos os regulamentos da Fifa).

No entanto, cabe ponderar que o estatuto da própria Fifa (normativo que, em tese, se sobrepõe a todos os demais regulamentos) dispõe que ela “está comprometida a respeitar todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deve envidar esforços para promover a proteção desses direitos”. Portanto, considerando o teor das mensagens que os capitães pretendiam expor em suas braçadeiras, absolutamente condizentes com esse princípio de proteção aos direitos humanos, a discussão jurídica sobre o eventual uso das mesmas não se encerraria na mera aplicação do Regulamento da Copa do Mundo.

Por fim, além de diversos aspectos disciplinares e de funcionamento da competição esportiva em si (por exemplo, a quantidade de participantes, o formato da disputa, o limite de número de jogadores inscritos por seleção, o prazo para eventuais cortes de atletas lesionados após a convocação…), vale destacar que o Regulamento da Copa do Mundo contempla normas também sobre questões complementares, porém de evidente importância para o evento em termos comerciais e de mídia.

O artigo 44 ratifica a Fifa como proprietária original de todos os direitos comerciais relacionados ao evento, remetendo ao Regulamento de Mídia e Marketing como o normativo que rege mais detalhadamente esse ponto e os aspectos concernentes ao relacionamento com a imprensa. Nesse sentido, o próprio artigo 44 do regulamento da Copa do Mundo estabelece obrigações dos participantes no atendimento aos veículos de imprensa, tais como a organização de instalações dedicadas no local de treinamento e a participação compulsória em determinadas atividades (por exemplo, as entrevistas coletivas realizadas nas vésperas das partidas).

Enfim, diante da relevância e da grandeza da Copa do Mundo, não surpreende que sua regulamentação seja complexa e aborde temas tão diversos. Dentro e fora das quatro linhas, todos os participantes da competição, assim como os terceiros com ela diretamente envolvidos (inclusive organizadores, patrocinadores, imprensa…) devem observar as normas que lhes competem. E tudo isso sem prejuízo do necessário cumprimento das leis em vigor no país-sede.

Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte

Fonte: Máquina do Esporte

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